Texto produzido por Lúcio Flávio Pinto
Publicado em: http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&cod=77178 em 23.08.2013
Imagem: ooutroladodamoeda.com.br
Bertha Becker, que morreu no final
do mês passado, aos 83 anos, no Rio de Janeiro, era considerada por alguns como
"a maior geógrafa, maior conhecedora e a cientista que mais influenciou
políticas públicas para a Amazônia”. Foi como a definiu Raimunda Monteiro,
professora e pesquisadora da Ufopa (Universidade Federal do Oeste do Pará),
orientanda de Becker e que com ela esteve em 2011, talvez na última viagem que
fez à região, para debater a criação do Estado do Tapajós.
Não sei se o título é justo ou se é
cabível pensar realmente num título como esse. Sem dúvida ela escreveu muito,
andou bastante pela região, provocou polêmicas e influenciou ações, com o que
garantiu sua posição de destaque entre os amazonólogos. Tinha uma
característica relevante: procurava enquadrar a narrativa sobre a Amazônia num
quadro explicativo mais amplo e num marco teórico universal. Não era apenas
impressionista ou empiricista. Nem, no outro extremo, teórica demais.
Na primeira das várias vezes em que
a encontrei, a parabenizei e lhe agradeci pelo gesto nobre que tivera ao
escrever seu pequeno (e muito lido) livro Amazônia, que saiu nos anos 1990 na
série Princípios da Editora Ática. Dos 20 livros da sua bibliografia comentada,
um era meu, o Amazônia: no rastro do saque, de 1980, que ela disse ser
"reportagem com enfoque sociológico sobre a realidade amazônica”.
Raramente os acadêmicos se permitem
o risco de incluir livros de jornalistas na bibliografia que montam. Acham que
pode desvalorizar suas teses e dissertações, sobretudo quando elas ainda
dependem da aprovação de uma banca examinadora. Jornalismo não poderia levar o
sinete de obra científica, que mereça referência. Seria para ser lido e
esquecido, embora muitos acabem por usá-lo — desde que evitando a citação.
Com o tempo e em função das
crescentes divergências que fomos tendo em cada encontro de trabalho, começou a
surgir um mal-estar entre nós, que talvez a tenha levado a excluir meu livro de
sua biblioteca. Nos últimos debates nos quais estivemos juntos, Bertha já
antecipava que eu iria discordar dela, o que eu fazia sem constrangimento nem
qualquer intenção maldosa. Eu gostava dela, a respeitava e admirava. Era uma
pesquisadora de valor e uma pessoa eminente.
Mas realmente minha crítica ao seu
trabalho se tornou inevitável, em função da própria evolução do conhecimento
que fui acumulando sobre a Amazônia. Percebo hoje que quase 50 anos de
dedicação sistemática a um tema fazem alguma diferença quando confrontados com
abordagens mais recentes, menos constantes e, apesar disso, de maior pretensão
intelectual.
Acho que a geopolítica, tanto a
velha, de matriz conservadora e ideologicamente à direita do espectro, quanto a
nova, de enfoque esquerdista, fazem mal à compreensão da Amazônia. Os tipos
ideais decorrentes de sua matriz explicativa e a rigidez formal do seu
raciocínio têm se mostrado incapazes de apreender a complexidade do processo
histórico atual da Amazônia.
É tudo demasiadamente esquemático,
numa versão do velho dualismo que faz os encantos dos intérpretes, mas de pouca
serventia se mostra àqueles que participam do drama real e concreto da vida. A
escolástica não deixa de gerar distorções para se tornar mais aceitável,
simpática, sedutora. Especialmente para aqueles que querem exaurir em esquemas
explicativos fatos muito mais ricos.
Recentemente acompanhei um projeto
de pesquisa no qual a autora atribuía aos americanos o tom colonial e os
aspectos nefastos da história da Companhia Vale do Rio Doce, criada em 1942
para abrir uma fonte de fornecimento de minério de ferro aos aliados, que
combatiam o nazifascismo na Segunda Guerra Mundial. A manipulação dos Estados
Unidos nos bastidores continuaria até hoje.
Isso é uma falácia. Não resiste à
menor checagem. Mesmo que por meio de uma sofisticada chantagem, Getúlio Vargas
conseguiu apoio dos EUA para a siderúrgica de Volta Redonda, que inseriu o
Brasil na história do aço para valer (embora em posição irrelevante). E o peso
americano foi logo deslocado para a Europa e a Ásia. Pelo contrário, a
participação da United States Steel em Carajás é exemplo de um dos maiores
fracassos de uma multinacional na exploração de recurso econômico em país
estrangeiro.
A busca por um enquadramento teórico
original e a necessidade de oferecer um projeto de organização para a Amazônia,
que Bertha Becker empreendeu com pertinácia, não resultaram satisfatoriamente,
no meu entendimento. O modelo colonial imposto à região é o de sempre nas
relações entre um poder central e uma periferia, mas a mecânica desse processo,
colocada em funcionamento nos nossos dias, está sujeita a dinâmicas novas.
Essa conjuntura distinta é que
oferece a oportunidade de libertação de mais essa colônia de escapar à bitola
do colonizador. Teorias rígidas, mesmo que desenvolvidas como armas de
libertação, acabam por desfavorecer o objetivo pretendido. Os esquemas criados
permitem ao autor da teoria explicar, embora equivocadamente. Mas não intervir
na realidade de maneira a modificá-la. Por isso, o trem continua a carregar as
riquezas para fora, enquanto os teóricos teorizam sobre uma base factual mais
pobre do que a condição da Amazônia.
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