Texto retirado do Jornal da Ciência (http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=86188) | |
Artigo de Charles R. Clement1, Juliana Lins1,André B. Junqueira1,2, Ana Catarina C. Jakovac1,2, Tiara S. Cabral1, Carolina Levis1, Alessandro Alves-Pereira1,3, Ima Célia Guimarães Vieira4
A biodiversidade amazônica está sendo destruída porque não tem suficiente valor econômico para os amazônidas, os brasileiros ou o mundo. Em um primeiro momento a afirmação pode parecer estranha, pois a biodiversidade é considerada um dos principais recursos naturais da Amazônia e o conhecimento tradicional associado a ela é considerado a chave de acesso a seu uso. Por que então a biodiversidade não teria valor suficiente?
Ao longo dos últimos 11 mil anos, os povos indígenas da Amazônia dedicaram inteligência e esforço em identificar os possíveis usos depelo menos 3500 espécies de plantas (recursos biológicos) e, para as 100 espécies mais úteis, investiram na sua seleção, propagação, manejo e cultivo, criando recursos genéticos durante o processo de domesticação. O ritmo de investimento indígenafoi reduzido drasticamente ao longo dos últimos 500 anos, quando os povos indígenas foram dizimados e colonizados. Os ribeirinhos continuam a investir em alguns desses recursos biogenéticos, embora em ritmo menor.
Hoje, a soja e a pecuária estão expandindo suas presenças na Amazônia, tanto sobre áreas já desmatadas quanto sobre áreas florestadas. Por que a tão falada biodiversidade da Amazônia não está expandindo a sua presença nos mercados? A razão é simples: não houve suficiente investimento em Ciência &Tecnologia e Pesquisa&Desenvolvimento&Inovação ao longo das últimas décadas para desenvolver as cadeias de produção dos recursos biogenéticos da Amazônia, diferente do que ocorreu com a soja, por exemplo. Estase tornouum sucesso porque o desenvolvimento de tecnologias esteve diretamente atrelado à produção e porque existe demanda no mercado globalizado. Para os recursos biogenéticos da Amazônia essa demanda não existe porque não houve investimentos para prepará-losao mercado. O ciclo do descaso é simples e irrefutável.
No entanto, existem dezenas de exemplos de sucesso no uso racional da biodiversidade, quase sempre em pequena escala e sempre onde existe uma organização social que desenvolve uma ligação com o mercado. As principais razões do sucesso limitado são a falta de qualidade e uniformidade do recurso e a dificuldade de acesso a quantidades razoáveis. Qualidade e uniformidade são características que podem ser resolvidas via melhoramento genético, enquanto que quantidades podem ser obtidas via tecnologias de produção adequadas às realidades locais e com o desenvolvimento de cadeias de comercialização com auxílio das instituições locais e estaduais. Quando existe a sinergia entre organização social e o mercado, estes fatores são resolvidos localmente. O Brasil possui competência em ambas as tarefas (melhoramento e comercialização) em nível nacional, mas esta competência não está sendo dirigida à biodiversidade, mas sim aos agronegócios rentáveis.
Com o avanço da soja, da pecuária e do setor madeireiro na Amazônia, a biodiversidade está cada vez mais ameaçada. Considerando que sempre existirá um intervalo entre o início de um esforço de P&D&I e o aumento de demanda no mercado, é imprescindível que o Brasil invista na sua biodiversidade agora, sob risco de não aproveitar as oportunidades que esta oferece e de vê-la desaparecer. Hoje o Brasil possui um conjunto de fatores que permitiriam uma verdadeira revolução científica enfocada na biodiversidade nacional, especialmente na amazônica:
1.Uma crescente atenção e valorização dos produtos provindos da Amazônia, dentro e fora do país;
2. Um crescente número de organizações sociais buscando participação nas economiaslocais e nacional;
3. Um conjunto importante de instituições federais, estaduais e privadas de C&T e P&D&I na Amazônia;
4. Um contingente grande de recém-doutorese outros profissionais de nível superior sem opções formais de emprego imediato;
5. Uma filosofia federal de descentralização dos recursos federais para C&T e P&D&I via um contingente crescente de Fundações de Amparo à Pesquisa;
6. Competência para investir em P&D&I de forma eficiente.
A professora emérita da UFRJ, Bertha Becker, é uma das principais pensadoras brasileiras sobre a realidade amazônica e nacional. Podemos dizer que sua geografia política permite apresentar a Amazônia com toda a sua complexidade e como uma região reveladora de desafios enormes na análise da territorialidade e gestão do território. E mais do que isso: permite perceber o papel estratégico (e as limitações) do Estado brasileiro em engendrar um novo modelo de desenvolvimento sustentável para a Amazônia.
Becker tem obtido sucesso em convencer diversos setores da ciência brasileira como a Academia Brasileira de Ciências-ABC, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência-SBPC e o próprio Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação-MCTI sobre a importância da C&T e da PD&I para o desenvolvimento da região.Tanto foram eficazes os seus esforços que estas instituições, junto com as Fundações de Amparo à Pesquisa, estão traçando um plano de ação e investimentos em ciência para a região. O delineamento até agora visível é promissor, mas requer mais - "uma verdadeira revolução científica enfocada na biodiversidade nacional, e em especial na biodiversidade da Amazônia", como ela sempre afirmou. Uma revolução é necessária não somente para aumentar investimentos, mas para revolucionar pensamentos, objetivos, métodos e consequências.
Segundo defende, os objetivos da revolução devem incluir a valoração da floresta em pé, a conservação do coração da floresta na Amazônia Ocidental e, acima de tudo, provocar um bem-estar crescente para os amazônidas e os recém-chegados à região. Estes três objetivos requerem mais do que C&T e PD&I, requerem educação de qualidade para toda a população brasileira e, especialmente, a amazônica.
Uma Revolução Beckeriana deveria incluir alguns objetivos adicionais aos anteriormente mencionados:
1. Identificar demandas de mercado para os recursos biogenéticos já conhecidos das populações tradicionais e,concomitantemente, identificar demandas destas populações;
2. Domesticar de forma participativa os recursos biogenéticos a fim de aumentar a uniformidade, a qualidade e a quantidade dos produtos destinados ao mercado;
3. Desenvolver produtos e processos capazes de agregar valor nas regiões de origem dos recursos;
4. Reduzir o número de intermediadores entre as comunidades e os mercados;
5. Fomentar a interação entre as empresas de pequeno e médio porte e comunidades do interior para desenvolver cadeias de produção e comercialização eficientes e socialmente justas.
Para maximizar o impacto dessa Revolução Beckeriana,a curto prazo, alguns pressupostos devem ser respeitados:
1. A escolha dos recursos biogenéticos a receberem investimentos deveria ser feita de comum acordo entre as comunidades locais, as organizações sociais (especialmente ONGs e Sindicatos de Trabalhadores Rurais), as micro, pequenas e médias empresas, e as instituições de P&D&I da região.
2. Novos recursos biogenéticos sempre possuirão pequenos nichos de mercado e o esforço de desenvolvê-los deveria ser proporcional. Ou seja, embora cada recurso deva receber atenção, isso não deve ser via um grande complexo burocrático. A revolução poderá ser traçada nacionalmente e de forma transdisciplinar, mas deverá ser executada localmente via FAPs e instituições regionais, e sempre via projetos desenhados para atender recursos biogenéticos e comunidades específicos.
3. O contingente de recém-doutores desempregados deve ser chamado a colaborar na revolução via bolsas (com enxoval) vinculadas a acordos entre organizações da sociedade civil e instituições de P&D&I e de extensão rural que atuam na região. Cada recém-doutor pode trabalhar com um ou dois técnicos agrícolas ou recém-graduados moradores da região.Esses profissionais devem estar preparados para viver e atuar no interior durante a vigência da bolsa (que deveria ser de pelo menos três anos, renovável por mais três). A revolução não terá sedes próprias, mas ficar sediada nas organizações sociais das comunidades, que devem ser estimuladas a criar empreendimentos locais.
4. Não apenas a domesticação participativa será importante, mas certos produtos necessitarão de esforços mais direcionados ao seu beneficiamento. Esforços para incubar novos produtos e processos e até novas empresas deveriam ser uma prioridade das instituições que desejam participar da Revolução Beckeriana.
5. A Revolução Beckeriana proposta precisa começar com investimentos massivos dos governos federal e estaduais, via Fundos Setoriais, orçamentos ministeriais e FAPs, mas os governos e instituições precisam estar preparados para gerenciar também investimentos externos ao mesmo tempo em que protege os direitos à propriedade intelectual das comunidades locais.
Um outro mundo é possível, com a renovação do quadro institucional de C&T que a professora Bertha Becker propõe. Como chegar lá requer uma sequência de decisões sobre investimentos em educação, ciência e extensão, que juntos criam desenvolvimento inclusivo.
Esperamos que estas ideias "beckerianas" possam contribuir com o plano desenhado atualmente para a Amazônia, pois oferece mecanismos de incluir os amazônidas como atores centrais e revolucionar a ciência que aqui é praticada, rumo a um novo padrão de desenvolvimento.
Texto produzido por um grupo de pesquisadores, liderado pelo Dr Charles Clement:
1 Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia-INPA, Manaus, AM; 2University of Wageningen; 3 ESALQ - USP, Piracicaba, SP; 4 Museu Paraense Emilio Goeldi-MPEG, Belém, PA
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domingo, 17 de março de 2013
Uma Revolução Beckeriana para a biodiversidade brasileira
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