Por Charles R. Clement, INPA
Em 22 de dezembro de 2003
A biodiversidade amazônica está sendo destruída porque
não tem suficiente valor econômico para os amazônidas, os brasileiros ou o povo
do mundo. No primeiro momento, isto pode parecer estranho, pois a
biodiversidade é geralmente considerada como um dos principais recursos
naturais da Amazônia. Além disto, o conhecimento tradicional sobre a
biodiversidade é considerado a ter grande valor. Por que não tem suficiente
valor?
Ao longo dos últimos 11 mil anos, os povos indígenas
da Amazônia investiram sua inteligência e esforço em identificar usos para pelo
menos 3500 espécies da biodiversidade amazônica e, para as 100 espécies mais
úteis, investiram na sua seleção, propagação, manejo e cultivo. As 3500
espécies podem ser considerados recursos biológicos, com saber tradicional
sobre seu uso. As 100 espécies são recursos genéticos, pois foram domesticadas
em algum grau. Estes dois grupos de recursos são parte do conhecimento
tradicional. O ritmo de investimento indígena foi reduzido drasticamente ao
longo dos últimos 500 anos, período em que os povos indígenas foram dizimados e
depois colonizados pelos atuais brasileiros.
Hoje, a soja está expandindo sua presença na Amazônia,
contribuindo para a recuperação de algumas áreas alteradas e o desmatamento de
novas áreas de Cerrados, Campos Naturais, Florestas de transição e até
Florestas densas. Pergunta_se: por que a tão falada biodiversidade da Amazônia
não está expandindo sua presença nos mercados como alternativa à soja? A razão
é simples: não houveram suficientes investimentos em C&T e P&D&I ao
longo das últimas décadas para desenvolver as cadeias de produção dos recursos
biológicos e genéticos da Amazônia, como houve com a soja. A soja é um sucesso
porque estes investimentos foram um sucesso e porque a soja tem demanda no
mercado globalizado. Não existe muito demanda para os recursos bio_genéticos da
Amazônia porque não houve investimentos para prepará_los para os mercados
nacional e internacional. O ciclo do descaso é simples e irrefutável.
A história da Amazônia é repleta de exemplos de
recursos bio_genéticos levados para outras regiões, tanto nacionais como internacionais,
onde receberam novos investimentos para criar oportunidades de mercado. O mais
famoso exemplo é a seringa, que foi levado em 1876 e causou a decadência do
ciclo de borracha 50 anos mais tarde. Durante o intervalo, os ingleses
investiram em P&D&I para transformar a seringueira mediocre do Rio
Tapajós numa seringueira produtiva e de qualidade que poderia desbancar a
seringueira nativa da Amazônia no mercado mundial. Por que o governo brasileiro
não investiu no seu melhoramento antes de sua perda? A resposta não está
publicada na literatura da época. Somente em 1938, após a decadência da
borracha, o governo federal criou o Centro Nacional de Ensino e Pesquisa
Agronômica, em Belém do Pará. Um exemplo mais recente é a pupunha para palmito,
que foi identificada pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia em 1980,
divulgada via o Globo Rural em 1985, e hoje ocupa 15.000 ha nas regiões
sudeste, sul do nordeste e centro_oeste, e norte do sul. Neste caso, os
investimentos federais completaram uma parte da cadeia de produção de palmito,
mas não todas, de forma que o sudeste teve vantagem comparativa, mesmo antes de
que suas instituições de P&D&I completarem a cadeia de produção naquela
região.
Existem dezenas de exemplos de sucesso no uso racional
da biodiversidade, mas sempre em pequena escala e sempre onde existe uma
organização social que desenvolve uma ligação com o mercado. As principais
razões do sucesso limitado são a falta de qualidade e uniformidade do recurso
disponível, e a dificuldade de acesso a quantidades razoáveis do recurso.
Qualidade e uniformidade são características que podem ser resolvidas via o
melhoramento genético, enquanto que as quantidades acessíveis podem ser
resolvidas via a produção sustentável e o desenvolvimento de cadeias de
comercialização. Quando existe a sinergia entre uma organização social e o
mercado, estes fatores são resolvidos localmente. Mas a escala e os resultados
são sempre locais. O Brasil possui abundante competência em ambas tarefas
(melhoramento e comercialização) a nível nacional, mas esta competência não
está sendo dirigida à domesticação (melhoramento genético e agronômico) da
biodiversidade nacional está sendo
dirigida aos agronegócios rentáveis, como a soja.
Com o avanço da soja, da pecuária e do setor
madeireiro na Amazônia, a biodiversidade amazônica está cada vez mais ameaçada.
Considerando que sempre existirá um intervalo entre o início de um esforço de
P&D&I e um aumento de demanda no mercado, é imprescindível que o Brasil
inicie um esforço concentrado de investimentos na sua biodiversidade agora, sob
risco de não aproveitar as oportunidades que esta oferece. Hoje o Brasil possui
um conjunto de fatores que permitiriam uma verdadeira revolução científica
enfocada na biodiversidade nacional, e em especial na biodiversidade da
Amazônia.
1. Uma clara consciência das ameaças à biodiversidade
nacional, e um desejo nacional para aproveitá_la e conservá_la;
2. Uma crescente número de organizações sociais
buscando participação na economia nacional;
3. Um conjunto importante de instituições de C&T e
P&D&I na Amazônia, tanto federais como estaduais e privadas;
4. Um contingente grande de recém doutores sem opções
formais de emprego imediato;
5. Uma filosofia federal de desconcentração e
descentralização dos recursos federais para C&T e P&D&I;
6. Um contingente crescente de Fundações de Amparo à
Pesquisa;
7. A competência para investir em P&D&I de
forma eficiente.
A revolução beckeriana propõe um pequeno número de
obetivos abrangentes:
1. Avaliar cientificamente o conhecimento tradicional
sobre os recursos biológicos e genéticos nacionais e suas espécies a fins para
identificar aqueles recursos com alguma demanda de mercado;
2. Domesticar de forma participativa os recursos
bio_genéticos com demanda para aumentar a uniformidade, qualidade e quantidade
de seus produtos destinados ao mercado;
3. Desenvolver produtos e processos capazes de agregar
valor nas regiões de origem dos recursos e reduzir o número de intermediadores
entre as comunidades e os mercados;
4. Fomentar a interação entre empresas de pequeno e
médio porte e as comunidades do interior para desenvolver cadeias de produção e
comercialização eficientes.
Para maximizar o impacto dessa revolução científica a
curto prazo alguns pressupostos deveriam ser respeitados:
1. A escolha dos recursos bio_genéticos a receberem
investimentos deveria ser feito de comum acordo entre comunidades locais
organizadas, organizações sociais (especialmente ONGs), as micro, pequeno e
médio empresas interessadas, e as instituições de P&D&I da região, pois
as entidades da sociedade civil e do setor produtivo deverão ter uma boa idéia
de demanda de mercado para os recursos escolhidos. Este modelo já é preconizado
pelo Centro de Biotecnologia da Amazônia e desejado pelos Sebraes da região,
pois garantirá um enfoque em resultados de curto prazo.
2. Novos recursos bio_genéticos sempre possuirão
pequenos nichos de mercado e o esforço de desenvolver estes deveria ser,
necessariamente, proporcional. Ou seja, embora cada recurso deverá receber
atenção, não deveria ser criado um grande complexo burocracia para fazer isto.
A revolução poderá ser traçada nacionalmente, mas deverá ser executada
localmente via as FAPs e as instituições regionais, e sempre via projetos
desenhados para atender um recurso em uma comunidade.
3. O contingente de recém doutores desempregados
deveria ser chamado para colaborar na revolução via bolsas (com enxoval)
vinculadas a acordos entre ONGs e instituições de P&D&I. Os recém
doutores que trabalharam na domesticação participativa deveriam estar
preparados para vivir e atuar no interior do país durante a vigência da bolsa
(que deveria ser de pelo menos 3 anos, renovável para mais 3). A revolução
aprenderá do Projeto Rondon, mas não terá sedes próprios -- será sediado com as
organizações sociais nas comunidades. Recém mestres também deveriam ser
aceitos, embora o enfoque será em recém doutores.
4. O enfoque em domesticação participativa não quer
dizer que outros esforços de desenvolver produtos oriundos da biodiversidade
são menos importantes. É importante lembrar que o conhecimento tradicional das
comunidades é muito menor que a magnitude da biodiversidade e não inclue grupos
importantes, como os microorganismos e artropodas. Estes grupos requerem a
atenção direta das instituições de P&D&I, de preferência em parceria
com micro, pequeno e médio empresas. Esforços para incubar novos produtos e
processos, e até novas empresas deveriam ser uma prioridade das instituições
que desejam participar da nova revolução científica.
5. A revolução científica proposta precisa
começar com investimentos massivos dos governos federal e estaduais, via os
Fundos Setoriais, os orçamentos ministeriais e as FAPs, mas a idéia logo
chamará a atenção do G7 e das agências internacionais. Neste momento, os
governos e as instituições precisam estar preparados para gerenciar o apoio
externo ao mesmo tempo que protege os direitos à propriedade intelectual das
comunidades locais.
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