Por Gilberto Câmara
Bertha Becker é certamente uma das personalidades mais fascinantes da Geografia brasileira. Ao longo de seus anos de dedicação a pensar o Brasil, Bertha produziu alguns dos mais importantes estudos sobre nosso País, com a Amazônia como foco privilegiado. Conviver com Bertha é um destes privilégios que tornam a vida menos monótona, seja ao assistir suas agradáveis palestras ou tomando um bom uísque numa mesa de bar (single malt, por favor). É como ouvir um bom disco de Piazolla. A vivacidade de seus argumentos desconcerta qualquer marmanjo que acha que, por saber definir um modelo de dados no SPRING, sabe também representar o mundo num computador.
Lembrei-me de Bertha imediatamente após ser convidado para proferir a palestra “O Que Esperar da Tecnologia GIS para a Próxima Década”, no Congresso GeoBrasil 2001. Pode parecer uma estranha associação, de vez que ela, apesar de entusiasta das geotecnologias, jamais irá converter arquivos SHP para MIF. Mas a leitura de Bertha é uma referência justamente por estar seu discurso além das atuais capacidades das geotecnologias, e colocar em questão os instrumentos que utilizamos.
Explico melhor: como um aprendiz de pitonisa como eu pode sequer começar a pensar como serão as geotecnologias daqui a dez anos? Uma possível abordagem é considerar a idéia de limites: Até aonde podem ir as geotecnologias? Qual será o conceito de GIS daqui a 10 anos? Quais os limites conceituais, tecnológicos, organizacionais e científicos para a evolução das geotecnologias?
Comecemos pelos limites conceituais: aonde acabam e começam as geotecnologias? Até 5 anos atrás, respondiamos de forma simplória: os GIS representam mapas em computadores. Esta visão está sendo ampliada, a partir dos conceitos-chave de localização e distribuição. A idéia de localização é associar uma referência espaçotemporal às entidades do mundo real, e fazer inferências com base no posicionamento
relativo dos objetos (“o carro quebrou no quilômetro 20,5 da via Dutra”). O conceito de distribuição denota a idéia de uma superfície contínua que modela a evolução de um fenômeno, como a poluição num lago ou a mortalidade por homicídios em São Paulo, como visto na Figura 1.
Isto nos leva às novas tecnologias de software e hardware, cuja evolução nos permitirá estar conectados e localizáveis sempre (espero que sob nosso controle pessoal). A inclusão de aparelhos GPS em telefones celulares é apenas o primeiro passo na direção do que Max Egenhofer chama “Spatial Information Appliances” (vejam mais em www.dpi.inpe.br/geoinfo99/program.html). Minha favorita é uma “varinha de condão” que informe automaticamente onde estamos e o caminho a seguir para chegar no Sambódromo sem passar pela favela de Vigário Geral.
Outro avanço significativo é o uso de sistemas gerenciadores de bancos de dados para armazenar e recuperar tanto as geometrias quanto os atributos de dados espaciais. Estes avanços permitirão que o dado geográfico passe a fazer parte do cerne de informações da empresa, e que não seja mais gerenciado em separado. O caminho natural desta evolução é o aparecimento de sistemas muito diferentes do que hoje entendemos como GIS: não mais sistemas monolíticos de propósito geral, mas aplicativos desenvolvidos a partir de componentes flexíveis, baseados em tecnologias abertas.
Deste modo, a superação das barreiras conceituais, tecnológicas e organizacionais que mantém os GIS como sistemas isolados irá ampliar sobremaneira o impacto das geotecnologias, ao integrar a geoinformação na gestão diária de nossas empresas públicas e privadas.
E aqui voltamos a nossa Bertha, para considerar os limites mais desafiadores: nossa capacidade de representar o mundo no computador e prever a evolução espaçotemporal dos fenômenos. Por exemplo, em seus estudos sobre a Amazônia, ela nos ensina que o processo de ocupação territorial da região é um resultado de dois componentes: ações baseadas numa visão externa ao território, implementadas através de redes (rios, estradas, transporte aéreo e fluxos de capital); e ações baseadas numa visão interna do território, e privilegiando o desenvolvimento local e representáveis por uma geometria de áreas. Aqui o desafio para as geotecnologias fica mais evidente: como capturar e representar computacionalmente a interação dinâmica entre o “espaço das redes” e o “espaço dos lugares”? Como traduzir de forma quantitativa o comportamento dos atores públicos e privados em suas estratégias de apropriação do território?
Aí temos o maior desafio da Ciência da Geoinformação para as próximas décadas: a disponibilidade de modelos preditivos de fenômenos espaço-temporais. Este desafio não será fácil de ser vencido. Em seu instigante livro “Impossibility: The Limits of Science and The Science of Limits”, o astrônomo inglês John Barrow propõe uma análise de nossa capacidade de explicar diferentes fenômenos da natureza, considerados em função de sua complexidade e da incerteza sobre as equações matemáticas que os governam. Como mostra a Figura 2, os sistemas sociais e econômicos estão entre os mais complexos de prognosticar, e estão além do estágio atual do conhecimento.
Bertha, você pode ficar tranquila: ainda estamos longe de poder capturar toda a riqueza das ações políticas e sociais sobre o território, e temos um longo processo de pesquisa científica, antes de chegar a resultados aceitáveis. Seus estudos seguirão sendo referências imprescindíveis por muito tempo ainda. A respeito, veja-se ainda o artigo “Representações Computacionais do Espaço: Um Diálogo entre a Geografia e a Ciência da Geoinformação”, disponivel em www.dpi.inpe.br/gilberto/palestras.html).
Sem comentários:
Enviar um comentário