Entrevista com Bertha Koiffmann Becker 8/6/09
A importância dos estudos de Bertha Koiffmann Becker para o entendimento da geopolítica brasileira e, em particular, da Amazônia pode ser expressa por sua extensa obra científica, em que discute desenvolvimento regional sustentável, fronteiras, biodiversidade e geografia política. Neste volume dos CHC, dedicado à Amazônia, seu nome como depoente da história de transformações ocorridas na Amazônia brasileira nos fornece uma compreensão da dinâmica regional, pontuada pelo conceito de fronteira enquanto espaço não plenamente estruturado e, por isto mesmo, potencialmente gerador de realidades novas.
A profa. Bertha Becker graduou-se em Geografia e História pela Universidade do Brasil (UFRJ) em 1952; fez doutorado e livre docência em Geografia (UFRJ) em 1970 sobre desenvolvimento rural no norte do Espírito Santo e pós-doutorado no Massachusetts Institute of Technology sobre estudos urbanos e planejamento. Aposentou-se em 2000 e atualmente é professora emérita da UFRJ e coordenadora do Laboratório de Gestão do Território – LAGET/UFRJ.
Desde 1970 desenvolve projetos sobre a geopolítica da Amazônia, com objetivo de identificar estratégias governamentais, processos e atores responsáveis pela ocupação e povoamento da Amazônia. Ao mesmo tempo em que identifica conflitos e mudanças estruturais ocorridas na região, sugere formas de uso do patrimônio natural capazes de favorecer a inclusão social e a soberania brasileira na Amazônia. Esta entrevista foi concedida em outubro de 2008, em sua residência no Rio de Janeiro, aos pesquisadores Nelson Ibañez (Laboratório de História da Ciência do Instituto Butantan) e Pablo Ibañez (Departamento de Geografia Política da USP).
Fale-nos um pouco de sua família e das influências nos seus primeiros momentos da vida.
Sou carioca da gema, nascida na Tijuca. Mas meus pais eram europeus, minha mãe da Ucrânia e o meu pai da Romênia. Casaram-se no Brasil. Eu acho que herdei deles a idéia da fronteira, porque eles vieram da Europa Oriental para a América. Fazer a América era a grande meta dos imigrantes, não é? Era realmente uma fronteira, uma fronteira no sentido de oportunidades, coisas novas. Meu pai veio em 1914, antes da Primeira Guerra Mundial. Ele pressentiu que vinha guerra e escapuliu. Combinou com uns amigos, pegaram um navio e vieram embora. E a minha mãe veio em 1918, depois da Primeira Guerra, época em que a Rússia e Ucrânia estavam totalmente conturbadas. Meu avô já tinha saído de lá e ela trouxe o resto da família para encontrá-lo.
Essa coisa da busca pela coisa nova, pelo desconhecido, pelas oportunidades me marcou muito porque eu sempre quis estudar a fronteira no Brasil: a fronteira em movimento, a expansão da fronteira demográfica e agropecuária. Eu não comecei só estudando Amazônia, comecei estudando o Sudeste brasileiro e descobri a expansão da pecuária sobre áreas de mata.
E por que a Geografia? Quando a senhora se formou em 1952, já existia clima no Brasil para se discutir a Geografia?
Por que a Geografia? Pela fronteira. Para conhecer o mundo, viajar e ver as coisas novas. Conhecer o planeta...
Quando eu me formei, existia Delgado de Carvalho na geopolítica, embora todo mundo discriminasse a geopolítica por causa do nazismo que, no Brasil, tinha alguns adeptos. Delgado de Carvalho havia feito um estudo sobre geografia política. Era uma época também de implantação nas universidades dos cursos de Geografia e História, inclusive com professores franceses que vieram e deram um impulso muito grande. O Pierre Monbeig em São Paulo foi fundamental. No Rio foi o Francis Ruellan, que nos levava para o campo, e o Pierre Deffountaines, que ficou um pouco aqui e um pouco lá. Havia, portanto, um clima. Ademais, e fundamental, processava-se a afirmação do Estado brasileiro.
Ah, mas eu já ia esquecendo o mais importante, que é a criação do Instituto Brasileiro de Geografia em 1938. A idéia de criar um Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE] estava ligada justamente ao fortalecimento do Estado. Temos que situar isso assim: o Estado brasileiro tinha sido Império até não muito tempo atrás. Formaram a República. E o fortalecimento do Estado brasileiro implicava necessariamente no conhecimento do território. Como é que se vai fortalecer um Estado se há controle sobre a base territorial? Então, na minha cabeça, a criação do IBGE está ligada indiscutivelmente ao fortalecimento do Estado brasileiro, não é verdade? Falava-se em mudar a capital federal do Rio para Brasília, expedições ao Planalto Central, o controle da Amazônia – primeiro, aliás, o projeto Rondon, a Fundação Brasil Central, depois a SPVEA – Superintendência de Valorização da Amazônia.
A idéia de controle do território começa a se consolidar relacionada ao fortalecimento do Estado. A preocupação territorial foi constante, mas antes foi necessário definir suas fronteiras, com Barão do Rio Branco. Agora não, agora existe um Estado que quer consolidar o controle sobre o seu território. Então o conhecimento do território é importante e eu acho que a criação do IBGE é crucial, assim como a criação dos cursos de Geografia e História nas universidades. Isso também pesou na minha trajetória. E eu tinha essa coisa da fronteira – essa foi uma herança dos meus pais, de buscar a América. E eu busquei a Amazônia.
Mas antes de estudar a Amazônia eu já havia estudado a fronteira no Sudeste. E é muito interessante porque o Brasil sempre foi um país em que a pecuária sempre foi importante, mas a pecuária se fazia em área de campo – na caatinga, no cerrado e na campanha gaúcha. Quando eu comecei a estudar a pecuária no Sudeste brasileiro, havia problemas com a alimentação no estado do Rio de Janeiro, o abastecimento. Eu cheguei até a pecuária e comecei a ver que estava havendo uma inversão total, que era a valorização das terras de mata para fazer pastagem, exatamente o oposto do que tinha acontecido historicamente até então – pecuária no campo e agricultura na mata. Naquele momento não, tirava-se a mata para colocar pastagem. Isso em São Paulo, Minas Gerais.
Eu sempre fiz pesquisa de campo, é uma coisa que tem que ficar clara e registrada. Teoria é fundamental, mas a pesquisa de campo tem que testar a teoria, tem que modificá-la – porque eu tenho que dizer se ela é válida. Inclusive na Amazônia, o campo é crucial, porque a dinâmica é muito forte, muito acelerada. É a fronteira em movimento – você chega dois anos depois não é mais fronteira, é uma cidade que se estabeleceu. Então tem que ir para o campo. Se você ficar aqui só especulando não vai acompanhar os processos que estão ocorrendo lá.
Há uma discussão nas Ciências Humanas de que nós estamos sempre a reboque da cultura européia e que não existe um movimento nacional. Do ponto de vista da Geografia brasileira, da História e das Ciências Humanas, que figuras nesse momento vão influenciar esse tipo de pensamento no Brasil?
Bom, eu era aluna de Josué de Castro. Era uma grande figura, assim como Arthur Ramos. E tive também alguns professores de história interessantes, embora a maioria fosse horrorosa, como Eremildo Viana. Ele era um dedo duro terrível! Então esses professores marcaram. Fui aluna também do Hilgard Sternberg, que depois foi para Berkeley e está lá até hoje. Esses eram professores.
Em termos de formar cabeça, mais do que o Celso Furtado, o que mais me influenciou foi Caio Prado Junior. A Formação do Brasil Contemporâneo foi um livro que mexeu com as minhas entranhas, porque ele
tem uma visão extremamente abrangente, histórica. Ele começa dizendo: “O sentido da colonização...” Isso é básico, não é não? Ele tinha uma sensibilidade! O sentido da colonização é o que marcou esse país todo, digase de passagem. Então para mim foi a obra que marcou o embasamento do meu conhecimento sobre o Brasil.
Quando eu estudei, o curso de Geografia e História na época era um só e, na verdade, aprendi muito pouco, sabe? A universidade era toda complicada. Aí o Hilgard me convidou para ser auxiliar de ensino, instrutora – qualquer coisa desse tipo. Ele me atribuía curso para dar e eu tive que me virar! Eu estudei muito! Por um lado era uma coisa de doido, colocar uma recém-saída da universidade para dar cursos, mas por outro lado, foi muito bom pra mim. Mandava dar cursos de tudo: litoral do Brasil, relevo do Brasil, vegetação do Brasil, população no Brasil. Tive inclusive que estudar geologia, relevo. Eu ficava arrancando os cabelos, mas foi muito importante ter essa visão, porque andei por todas as disciplinas para preparar as aulas. Dava aula no curso de História, Jornalismo, etc.
Ele mandava a gente fazer tudo, sabe? Como tive que estudar muito, fui recorrer às bases efetivamente: Caio Prado, Celso Furtado. Aí é que eu fui ensinar mesmo. Depois fui ensinar no Instituto Rio Branco, então li o Golbery. Foi aí que descobri a geopolítica.
Um belo dia me telefonam do Rio Branco – porque o meu catedrático, o Hilgard, tinha sido professor lá – dizendo que o Arthur Wiss havia falecido. Lembra daqueles irmãos? Eram dois crânios, e um deles teve um aneurisma cerebral e foi-se assim: poft! Ligaram para a Universidade para saber se alguém estava disposto a assumir aquela disciplina, Geografia. E eu resolvi assumir em 1966. Fiquei 10 anos, até 1976, em pleno período de ditadura militar.
Aceitei porque estava precisando de dinheiro – vou dizer a verdade – para ter uma “grana” extra. Quando cheguei, o diretor era o embaixador Camilo de Oliveira que ficou muito pouco tempo, já estava se aposentando. Depois dele veio o embaixador Antonio Correia do Lago, uma grande figura! Quis colocar ordem e inovar no Instituto.
Bom, cheguei e vi o programa de Geografia que o Arthur dava, e não tinha o menor cabimento! Era dava um programa de Geografia assim: plantation, sistemas asiáticos – sistemas agrícolas que os meninos estudavam no ginásio. Para quem ia ser diplomata isso devia enjoar. Pensei: “Tenho que descobrir alguma coisa especial para quem vai ser diplomata.” Procurei e achei a Geopolítica, as teorias do Mackinder. Ninguém falava nisso aqui no Brasil, depois da II Guerra Mundial. Aí fui estudar, fui ler...
Então a recuperação da geopolítica foi objetivada pela entrada no Itamaraty?
Ah, foi. Porque achei que tinha que descobrir um rumo, uma linha de ensino que fosse útil para quem ia ser diplomata. Eu não podia ficar repetindo os programas da universidade sobre a agricultura. Os alunos adoravam! Resgatei as teorias geopolíticas, utilizei John Friedman, um grande nome, que inclusive fez um livro sobre a Venezuela, Guiana, a fronteira de recursos. Eu dava curso de Geopolítica e América Latina, que eram coisas úteis para eles. Eles gostaram muito. Tanto que, quando o Itamaraty mudou para Brasília, eles fizeram uma enquete entre os alunos para saber que disciplinas, deveriam constar do curso e Geografia ganhou em primeiro lugar. Eu fiquei feliz porque eu suei para montar esse programa. E no começo eles tinham dificuldade, não conseguiam achar professor lá em Brasília para dar aquela disciplina, mas depois, evidentemente, devem ter encontrado.
Então a senhora é acadêmica pura, voltada unicamente para a Universidade?
Isso. Dava aula e realizava pesquisa. Durante a maior parte, quase que a totalidade da minha vida eu apenas ensinei e fiz pesquisa. Tinha montes de bolsistas de Iniciação Científica do CNPq. O CNPq foi vital para mim – dava-me bolsa, dinheiro para viajar com os meninos. Eu levava todo mundo para a Amazônia. Levava professores. Isso foi muito importante. Eu consegui, digamos, fazer uma escola. Tem gente que segue hoje e que já é professor, doutor, já é altamente independente, mas que, na verdade, foi treinado por mim. Quase que a metade do Departamento de Geografia Humana passou por mim.
Nessa década de 1950 e 60, o CNPq estava preocupado com o desenvolvimento nacional e estimulou muito determinadas pesquisas, mas as Ciências Sociais ficaram para trás. Como a senhora angariou apoio para a Geografia?
O Almirante Álvaro Alberto quis criar o CNPq como coisa muito maior – ligada à pesquisa atômica. A idéia era essa. Mas foi o meu catedrático, o Hilgard Sternberg, que tinha me convidado para ser auxiliar de ensino, que conseguiu um espaço no CNPq para fazer Geografia e bolsas. Ele tinha muitos relacionamentos. Depois eu organizei projetos sobre abastecimento, pecuária, e fui pedindo ao CNPq até que angariei o meu próprio espaço inclusive na FINEP.
O Hilgard Sternberg criou um Centro de Pesquisas de Geografia do Brasil, na universidade, na década de 1950. Conseguiu uma caminhonete com a Fundação Ford, bolsas com o CNPq, e dinheiro para montar o Centro. Tinha um espaço no terraço da Casa de Itália: um espaço enorme, coberto, que era o nosso Centro de Pesquisas de Geografia do Brasil. E eu trabalhava no Centro. Ele nos mandava fazer resumos, fichas de livros – livro tal, tantas páginas. Eu não faço isso com os meus alunos não! Só às vezes eu mando fazerem uns trabalhos enjoados que eu preciso.
Mas então era assim: ele tinha conseguido um grande território geográfico, quase que uma instituição. Eu segui o mestre e me ‘independizei’. Depois nós chegamos até a brigar, porque ele queria continuar andando em mim e não dava! Mas depois ficamos de bem.
Então houve abertura para criação de uma linha [de pesquisa] no CNPq para a área de Geografia?
Eu acho que ele merece essa honra de ter conseguido o Centro de Pesquisas de Geografia do Brasil, que perdurou durante muito tempo. Ele foi embora para os Estados Unidos e o Centro continuou; acabou e se transformou no Programa de Pós-Graduação em Geografia que nós montamos na UFRJ. Depois criei um Laboratório de Gestão do Território – uma coisa muito menor, sem aparatos institucionais, mas que tem duas linhas, que agrega professores e colegas do IBGE. Não é um instituto, um centro de pesquisa – é um laboratório mais moderno de gestão do território.
Como era a relação Rio - São Paulo? Havia relação entre os cientistas? Como eram os encontros, os congressos dessa época?
A Geografia era o IBGE e as universidades – São Paulo e Rio de Janeiro. Houve um acontecimento muito importante em 1956: o Hilgard organizou no Rio de Janeiro o Congresso Internacional de Geografia. A União Geográfica Internacional já existia desde o final do século XIX. Mas ele organizou uma reunião Internacional no Brasil. Foi uma coisa de uma importância que eu não posso explicar! Os geógrafos foram mobilizados, todo mundo se deu bem – formaram comitês especializados nisso e naquilo – com gente da USP, do Rio de Janeiro, do IBGE. Houve uma grande solidariedade e foram elaborados seis livros de excursões geográficas pelo Brasil que eram objeto de pesquisa; até hoje são obras primas que deveriam ser reproduzidas.
O professor Ari França, da USP, escreveu sobre a expansão do café no Vale do Paraíba; o Aziz Ab’Sáber sobre não sei o quê, Lísia Bernardes, Nilo Bernardes... Eram grandes geógrafos na época. Eu era fichinha
ainda. Fui presidente da Comissão de Recepção, mas eu participei, ajudei – lembro disso muito bem. Foi uma confraternização fantástica. Imagina, vieram russos para cá! Gente do mundo inteiro. Depois das reuniões no Rio, os geógrafos se dividiram e cada um fez uma excursão pelo país de acordo com os seus interesses. Os livros de excursão para essas regiões são maravilhas. Há, inclusive, um sobre a Amazônia. Deveriam ser desenterrados e reeditados como história da Geografia no Brasil. É uma beleza. Então isso também foi importante para mim, eu tinha acabado de me formar... Inclusive eu me liguei à Geografia internacional para o resto da minha vida. Recentemente é que eu saí. Eu fui vice-presidente da União
Geográfica Internacional (UGI).
Fui a muitos congressos. Fui para a Índia com a maior cara-de-pau! Peguei um avião aqui e fui – mas o embaixador do Itamaraty me ajudou, me deu a passagem. Fui para uma Comissão sobre Regional Development and Policy. Depois eu fiz parte dessa comissão que então foi organizada por Brian Berry. Depois cheguei a vice-presidente da UGI, mas fiquei só um mandato de 4 anos, embora tivesse direito à reeleição, mas achei horrorosa a ‘políticália’! Não é a política, é a politicagem. Fiquei com pena, porque viajava a beça! Estive na Coréia, na Rússia... Mas caí fora! Inclusive porque sempre fui muito preocupada com a Amazônia.
Voltando à geopolítica...
Então, naquela época ninguém estava querendo falar muito em geopolítica não, porque com a II Guerra, com o negócio do nazismo, a geopolítica ficou feia! Ficou suja. Mas eu, como tinha que encontrar alguma
coisa que servisse para diplomata, disse: “Paciência!” Entrei nessa e amei! Amei porque eu acho que a geografia é uma ciência política. A geografia é uma ciência política! Não se pode lidar com o território, com o espaço geográfico, só do ponto de vista social; o espaço é político, por excelência, assim como e o território, não é?
Adorei o que eu mesma descobri, fui estudando e nunca mais deixei nem a geopolítica, nem a Amazônia. Bom, eu fui juntando. Eu fiz a geopolítica e tinha muito pouco material para a gente estudar – pouco material não só no Brasil, como no mundo. Ninguém queria falar muito sobre geopolítica.
Seu texto clássico - O Resgate - o mais lido e recorrente, é de 1988, não?
É, talvez seja esse sim. Mas tenho outro texto grande que eu fiz para um livro. Eu fui muito boba, nunca redigi os cursos que dei durante anos, e aí muita gente vinha e passava a mão. Foi um grande erro. Mas não dá para fazer tudo, não é? Há coisas que eu tenho que juntar para fazer um livro mais conceitual sobre a geopolítica. Mas é que não dá para deixar de pensar e pesquisar a Amazônia. A Amazônia é a própria geopolítica. É a própria questão.
Como foi seu encontro com o Golbery, que era tido como um papa da geopolítica, e com os militares de maneira geral?
A geopolítica deles estava muito ultrapassada, pra lhe dizer a verdade. E eu não tinha muito material. Tinha que inventar, estudar e montar tudo. Há um outro artigo mais pesado sobre a geopolítica num livro e outro sobre gestão de território, que já é uma geopolítica mais moderna. E muita coisa que eu trago da geopolítica da Amazônia. Existe um artigo interessante, entitulado Brasil – Tordesilhas, ano 2000, que é pura geopolítica.
A senhora viajou pelo país na década de 1970?
Em 1970 eu estava na Universidade e no Itamaraty. Eu vivia dizendo para o Embaixador, qualquer que fosse ele, que tinha que levar os meninos para conhecer o Brasil, antes que eles representassem o Brasil no exterior. O embaixador então resolveu fazer um grande projeto de visita às fronteiras da Amazônia, por insistência minha. Foi uma loucura! Eram 70 alunos. Foi chamado Projeto Cisne. Era um projeto que contou com avião da FAB, uma representante do Itamaraty, o piloto do FAB evidentemente, o projeto Rondon que estava “enfiado” também, e a professora de Geografia aqui.
Eu tinha preparado os meninos com um questionário baseado na teoria centro-periferia, com visão geopolítica. Quando eu vi aquele projeto Rondon do lado, fiquei danada da vida! Mas o que eu podia fazer? Eu não mandava, quem mandava eram eles. O projeto Rondon tinha aquele tom um pouco faccioso, sabe? Não era muito livre não – vamos dizer aqui a verdade. Mas, de qualquer maneira tivemos que ir, e lá fomos nós! Os alunos me chamavam da “Tigresa de Haifa”, porque judia e muito brava nos exames vestibulares que eles faziam para entrar no Itamaraty, e lá dentro também. Quando chegamos nas fronteiras do Mato Grosso, onde éramos recebidos pelo Exército, pela Marinha – ficávamos alojados nas sedes deles –, os alunos brincaram comigo e disseram que eu virei a jaguatirica de Ponta Porã. De Tigresa de Haifa para jaguatirica...
Então essa ida para a Amazônia com os alunos foi muito importante. Foi importantíssima... Primeiro para os alunos, porque eram realmente todos de elite, das capitais – ninguém conhecia mesmo muita coisa do
Brasil. E a mudança do país, de 1970 para cá, foi uma coisa brutal.
E para mim foi importante porque eu entrei e nunca mais saí da pesquisa na Amazônia. Foi a gota d’água porque eu já estava estudando a expansão da pecuária no Sudeste derrubando mata, plantando pasto. Encontrei os mineiros e paulistas que derrubavam mata no Crixás, em Goiás. Eles me convidando para ir de aviãozinho particular lá para ver... Eu quase fui. Ia para o Triângulo Mineiro, para o oeste de São Paulo; eu ia entrevistar todo mundo. Encontrei com essa turma toda e eles estavam derrubando mata em Goiás justamente para plantar capim e criar gado. Era a fronteira em movimento, a própria. Quando eu cheguei em Cáceres com os alunos do Rio Branco em 1972, tive grande surpresa. Cáceres já estava inchada, o impacto do povoamento, da migração já estava ali.
De Cáceres fomos para Guajará-Mirim, brasileira e boliviana. Fomos a Rio Branco, Cruzeiro do Sul que, na época, era cheia de leprosos. Todo mundo ficou com medo de ir. Tinha um campus do Projeto Rondon lá. Depois passamos no Forte Príncipe da Beira – uma coisa belíssima, uma coisa espetacular, no Vale do Guaporé. Corumbá, Cáceres, Guajará-Mirim - nacional e boliviana, depois Rio Branco, Cruzeiro do Sul, Manaus e acabamos em Brasília. Eu dizia que devia levar os meninos para conhecer o país, mas a professora é que virou a Jaguatirica de Ponta Porá.
Ficaram embasbacados com a Amazônia. Os habitantes não ouviam a Rádio Nacional, sabia disso? Eles ouviam a voz da América e a Voz da Sobre a geopolítica e a ciência na Amazônia Rússia ou de Cuba. Não se ouvia emissoras de rádio brasileira nessas fronteiras do Brasil. Isso em 1970, você acredita nisso? É incrível, não é? Realmente era muito afastado do centro de comando nacional.
Que impacto a Amazônia sofria com as ações da Sudam?
Foi o Programa de Integração Nacional, pelo regime militar, e foi horrível no sentido do autoritarismo, da perseguição. Eu conheço bem, mas houve desenvolvimento também, como nas telecomunicações que
mudou completamente a Amazônia. E eu nunca mais deixei a região. Um ou dois anos depois, o pessoal da Engenharia da UFRJ daquele grande professor Coimbra que depois foi perseguido, resolveu percorrer a Belém- Brasília e me convidaram para participar. Percorremos toda a Belém-Brasília. Fantástico!
E então eu comecei a fazer projetos de pesquisa no CNPq e na FINEP sobre a Amazônia, e formar os meninos: os de iniciação científica, os professores que eu carregava... Eu pedia apoio ao Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, tanto no Rio como lá de Belém, e eles me davam caminhonete, motorista, gasolina – olha só – e as casas dos engenheiros para dormir, no meio das estradas, porque eu andava no meio da estrada mesmo. Foi uma metodologia própria. Era o que a gente fazia. Como é que eu ia fazer? Ia dormir no meio do mato, na estrada? Não dava. Naquela época ainda se podia viajar de noite pelas estradas, não havia o perigo que tem hoje.
De início pesquisamos muito o norte de Goiás, que depois virou o estado de Tocantins. Araguaína, Imperatriz – ali foi o “quente” da Belém- Brasília, não é? Depois eu fui ao Mato Grosso ver a colonização privada. Depois ao Acre, Amazonas... Dessa forma conheci muita coisa da Amazônia. Claro que eu não conheço tudo, porque ninguém conhece tudo, mas eu conheço muita coisa. Às vezes os regionalistas amazônidas ficam danados; muitos não gostam do pessoal do Sul, os sulistas. “Nós é que conhecemos a Amazônia”, dizem, mas na verdade conhecem seus respectivos estados, enquanto nós pesquisamos vários deles.
Essa foi a primeira expedição para a Amazônia. Fiz muitas expedições quando era aluna mas não à Amazônia. O Ruellan me levava para lá e para cá, mas não assim. Nessa eu fui coordenando a minha parte – e era grande, visitamos a fronteira. Foi uma coisa de muito maior peso, e que veio a calhar com o curso que eu tinha inventado para os diplomatas. Então foi o maior barato! Foi o máximo.
Depois, em 1990, a senhora também começou a fazer mais consultorias
para o governo?
Até essa época era só pesquisa e ensino. Quando é que eu comecei? Fui convidada ou indicada para fazer parte do Grupo de Aconselhamento do PPG7: Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais Brasileiras, e isso foi justamente na virada da década de 1990. O Programa foi implantado em 1993, mas efetivamente só começou a funcionar em 1995. Mas, desde 1993 eu entrei no grupo onde permaneci por 10 anos.
Isso me levou a Brasília, a ter contato com o Banco Mundial, e com as guerrinhas entre o Ministério do Meio Ambiente e o Banco. Eram violentas. A gente guerreava mesmo, o tempo todo. Lá na Amazônia todo mundo já me conhecia, porque eu fazia pesquisa, e aí começaram a me conhecer em Brasília, por causa do PPG7, que era um programa extremamente importante na ocasião. Era muito importante porque trazia dinheiro. Mas não só dinheiro... Trazia toda a ideologia da mudança para o ambientalismo. Não foi brincadeira essa mudança.
Muitos criticam o papel dessas agências pela interferência nas políticas públicas nacionais, através do financiamento. Nesses conflitos como é que a senhora viu o papel das agências internacionais?
Io no creo en bruxas, pero que las ai, las ai. Primeiro a gente não deve colocar todo mundo no mesmo saco, mas eu vejo que as agências têm um papel geopolítico importante, elas são um braço geopolítico de algumas potências. Não adianta dizer que é todo mundo bonzinho porque não é. Fazem o jogo das potências. A quantidade de agências da Alemanha... Foi imensa a ajuda que a Alemanha deu ao Brasil com KFW e a GTZ.
Porque eu digo que elas têm um papel geopolítico? Porque essas agências sempre têm subjacentes uma postura anti-Estado brasileiro. Vamos botar o dedo na ferida. Não é essa a questão? Sempre o Estado não presta, o Estado é um fracasso. Essa é a mensagem, esse é o discurso – então precisa das agências, precisa do estrangeiro porque o Estado é incapaz. Para mim, isso é geopolítica. Então eu acho que elas têm um papel geopolítico; umas têm mais, outras têm menos, assim como as ONGs – algumas têm uma preocupação social maior, enquanto outras são francamente preocupadas com a geopolítica, inclusive com a coisa do Brasil não se desenvolver, o Amazonas se transformar em museu, imobilizar os recursos... Foi uma pressão muito violenta durante uns 10 anos até hoje ainda é, mas na década de 90 foi muito maior.
E a senhora trabalhou com projetos vinculados ao Ministério do Meio Ambiente?
Inicialmente sim, porque o Ministério do Meio Ambiente era o lado brasileiro da questão. Por isso que eu disse que havia guerras incríveis. Naquela época não era a Ministra Marina Silva; o Secretario de Coordenação da Amazônia era o Dr. Seixas Lorenzo. Ele não era tão ambientalista feito a Marina. Porque eu também não sou. Tenho muito respeito por ela, não quero que se destrua a Amazônia, mas também não quero que ela seja imobilizada, que vire museu. Eu sempre escrevi contra isso, confesso a vocês que tinha medo de falar a esse respeito no início. Naquela época o fervor ambientalista era tão grande que eu tinha medo que jogassem pedras em mim.
Mas estava claro que se propunha um padrão de não uso da natureza, que muitos queriam que permanecesse imobilizada porque estavam desenvolvendo tecnologias lá, para utilizar os recursos daqui num novo patamar. Ora, que graça! E eu estava certa porque agora está todo mundo querendo utilizar os recursos. Foram reservas de valor. O que eu dizia naquela época: reserva de valor para uso futuro. O que está acontecendo hoje? Água, biodiversidade, carbono, as funções do ecossistema... Muito mais até do que eu pensei, porque eu falei na água e na biodiversidade. Secularmente, o homem explora a estrutura dos ecossistemas, estrutura que é resultado da interação de elementos bióticos e abióticos – bichos, vegetais, pedras; essa interação é a estrutura. Há séculos, desde a Antiguidade, a gente explora isso: o ouro, a água, o solo, a floresta, a madeira. Hoje, nós estamos explorando as funções dos ecossistemas.
Há um avanço na mercantilização da natureza. Os serviços ambientais vêm das funções dos ecossistemas, não mais da estrutura. Por isso é que a economia tem dificuldade de atribuir valor e preço a essas funções, que nunca pertenceram à esfera econômica. Mas de qualquer maneira o mercado está de vento em popa em Chicago, União Européia e Ásia. Eu estou propondo que a gente crie uma Bolsa de Valores em Manaus, uma Bolsa de Valores em serviços ambientais. O Brasil deve tratar de estudar esse negócio, aproveitar os serviços ambientais múltiplos que a natureza nos deu, e criar uma Bolsa aqui, não deixar essa evasão toda para lá.
A senhora começou no Meio Ambiente porém hoje não está mais. Por que?
Eu comecei no Meio Ambiente porque naquele momento a guerra era para tentar moderar o ambientalismo dentro do Ministério. O Brasil criou o Ministério do Meio Ambiente em resposta à pressão internacional, porque havia forte ingerência a companhando esse Programa Piloto. Esse processo coincidiu com a crise do Estado brasileiro – crise econômica, política, financeira – cujo projeto militar de integração nacional se esgotou com os choques do petróleo. Em resposta à enorme pressão internacional, o Brasil criou o Ministério do Meio Ambiente. Para ter interlocução, senão teria que se submeter a tudo o que se queria impor. Eu trabalhei nessa época com o Ministério do Meio Ambiente, no PP-G7, justamente tentando dosar a ideologia ambientalista. A pressão externa por vezes era pouco ética, por exemplo, usando dois pesos e duas medidas para fazer estudos. Para os americanos deixavam tudo, para nós os temas tinham que ser submetidos a análise, seleção e orçamento. Eles tinham um monte de dinheiro, destinado à ciência e tecnologia, mas depois não queriam dar mais. O nome parece demais, mas não é, eram guerras, guerras diárias.
Houve uma coisa maravilhosa esse período: uma vez por ano íamos visitar os projetos. Para mim foi maravilhoso porque eu não deixei de ir para campo, ia menos com professores e alunos, mas ia com meu grupo do PPG7. Mas à medida que a pressão ambientalista foi se tornando mais forte, possessiva e dura, eu saí, porque não sou ambientalista. Não tinha cabimento. Eu acho que não se pode destruir a natureza, mas não é fazendo ela ficar imobilizada que você vai resolver o problema.
Até porque ela não fica imobilizada e quanto mais se enrijece, mais caminhos alternativos vão sendo construídos.
Exatamente! É o que está acontecendo agora. Dizem que se vão proteger a natureza, mas a estão destruindo. É necessário produzir para conservar, é a minha posição agora, através de uma ciência e tecnologia adequada, capaz de utilizar os recursos sem destruí-los.
A senhora está agora na Secretaria de Assuntos Estratégicos?
Pois é... Fiquei ajudando o Ministério da Integração. Trabalhei com o Antonio Carlos Galvão, participei do plano da Rodovia Cuiabá-Santarém, do Plano Amazônia Sustentável. Isso foi uma experiência incrível!
Participei pelo Ministério da Integração, mas foi a primeira vez que vi um trabalho conjunto. O Lula colocou a Mary Allegretti, que era Secretária de Coordenação da Amazônia substituindo o Seixas Lorenço, do lado do Ministério do Meio Ambiente; e do lado da integração a Tânia Bacelar, que era diretora de Desenvolvimento Regional. Depois ela saiu e ficou o Galvão. E eu era consultora do Ministério da Integração. Participei da confecção do PAS – Plano Amazônia Sustentável - foi um plano maravilhoso que ficou pronto no final de 2004. Até hoje ele é válido, mas ele foi todo metamorfosiado, esvaziado, e ficou cinco anos engavetado. Em abril 2008 foi tirado da gaveta e sua coordenação transferida para a Secretaria de Assuntos Estratégicos, sinalizando para o fato de que a questão da Amazônia não se resume ao meio-ambiente. Tenho uma proposta desenvolvimentista, mas sem destruir o meio ambiente. Ao contrário, o meio ambiente é um trunfo, uma riqueza que a gente tem: o capital natural.
A senhora se vinculou a algum movimento político?
Nunca fiz parte de partido nenhum. Eu acho que foi muito melhor assim, porque me deu liberdade de pensar. Fui para o Itamaraty, depois me envolvi com o Ministério do Meio Ambiente, da Integração e depois de Ciência e Tecnologia. Circulei em vários ministérios. Tenho um pensamento autônomo e independente; que é uma coisa que eu acho que falta no Brasil, reflexão para ter pensamento autônomo. Falta reflexão na universidade. Essa coisa de dar valor só a quantos artigos publicou por ano, a preocupação com o quantitativo induz ao abandono da reflexão. Acho isso seríssimo no Brasil. Eu sou sempre da reflexão. Gosto mais da reflexão do que dos números; se tiver que largar um, eu largo os números.
E conhecer o Brasil é igualmente crucial. O fato de ir à Amazônia e ver o que acontece lá é fundamental. E também o fato de estar sempre em Brasília, conversando com fulano daqui e de lá, inclusive a ministra
Marina Silva que sempre me tratou com maior respeito. Não houve uma reunião pública em que eu estivesse presente, que ela não dissesse: “Contamos com a professora Bertha”, apesar de eu não ser ambientalista.
Isso eu prezo.
Eu ajudei muito no plano da Cuiabá-Santarém. Depois trabalhei na concepção da Política Nacional de Ordenamento do Território (PNOT) e, a seguir, na dimensão territorial do Plano Pluri Anual (PPA), numa consultoria ao Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), para o Antonio Carlos Galvão que é o diretor desse projeto, um projeto muito grande. Uma mobilização imensa de cientistas brasileiros porque a idéia era justamente acoplar ao PPA à dimensão territorial.
E a passagem para com o Ministro Mangabeira, da Secretaria Especial de Ações de Longo Prazo?
Um belo dia eu recebi um telefonema do assessor do Ministro Mangabeira dizendo que ele queria conversar comigo. Convidou-me para ir a Brasília e me disse que tinha lido as minhas coisas, queria saber se eu poderia e gostaria de colaborar com ele, coordenando um grupo de consultores.
Como ele gostou, leu e incorporou algumas idéias minhas e queria avançar nisso, eu fiquei muito feliz! Ora, o que um professor, um pesquisador quer na vida? Que as suas idéias sejam aceitas, não é? Aí eu aceitei. Tem muita gente que diz assim: “Você vai ficar ajudando o Mangabeira? Ele fica usando todas as coisas que você faz. O que ele está te dando?” Olha, é uma mentalidade tão boba, não acha? Eu estou muito feliz que ele use as idéias. Não é isso o que você quer? Você pensa, estuda, pesquisa a vida inteira para ser útil. Fizemos um trabalho grande, éramos cinco consultores. A Marilene Corrêa, que é reitora da Universidade Estadual
Sobre a geopolítica e a ciência na Amazônia do Amazonas, aceitou inicialmente mas depois saiu. E o Batista Vidal, que tinha uma posição muito extremada em relação à bioenergia, também saiu. Aí ficamos em três gatos pingados. Eu, coordenadora, o Francisco Assis Costa, da Universidade Federal do Pará, e o Wanderley Messias da Costa, da Geografia da USP. Pedimos uma série de notas técnicas, para suprir um pouco o nosso trabalho. Fizemos um seminário em Brasília para apresentar os resultados da pesquisa, muitos deles bastante interessantes. Tanto que a Marilene comentou: “Esse estudo deixou o PAS no chinelo.
Está muito à frente.”
Além do estudo em si, fizemos muitos relatórios e viajamos várias vezes com o Ministro para a Amazônia. Agora acabamos, vamos ver. O ministro mandou me convidar para um seminário em Belém para discutir
o extrativismo e propor à SUDAM a implantação de pólos industriais articulados aos recursos naturais na região.
A senhora poderia voltar um pouco e falar sobre o seu pós-doutoramento?
Ah sim, foi na década de 1980. Eu trabalhei durante um tempo, não era propriamente como consultora, porque era um grupo de pesquisadores nas Nações Unidas, UNCRED – United Nations Centre For Regional Development – em Nagoia, no Japão. Eles juntaram um grupo de pesquisadores – um africano, uma sul-americana, uns periféricos, para fazer estudos sobre agricultura, sobre a dinâmica agrícola. E eu fiz sobre o Brasil, evidentemente – saiu publicado, aquele foi um bom estudo.
E nisso, acabei conhecendo gente do MIT, dentre as quais uma professora chamada Karen Polansky, importante lá. Ela gostou muito de mim e resolveu me convidar como visiting scholar. Eu não dava aula,
não era visiting professor. Era um pós-doc em que eu assistia cursos, participava dos debates, expunha temas também. Era mais um intercâmbio. Fui com a cara e a coragem, e fiquei lá três a quatro meses, no Department of Urban Studies and Planning. Para falar a verdade, eu não gostei. Porque a visão deles é colonialista. A grande preocupação era habitação para os pobres, mas eles tinham um discurso que não tocava no âmago da questão.
Na época, o que eu gostei foi de ter assistido a uns cursos em Harvard e fiquei, ao mesmo tempo, chocadíssima. Havia uns professores “cobras”, e só tinha aluno da China, do Paquistão. Era o momento em que estava começando o desmonte do Estado. Em meados de 1980. Os professores mostravam como as empresas estatais não vendiam nada, como eram mal administradas, e que haviam entrado pelo cano. Estavam fazendo a cabeça da turma... Aquilo me chocou tanto! Eu percebi na hora, porque burra também eu não sou. Era um trabalho de solapa. Ia a periferia para lá e eles então faziam a cabeça de todo mundo com o discurso do shelter for the poor (“abrigo para os pobres”), que não é o meu. Ninguém me contou, eu vi como é que se fazem as cabeças para destruir o Estado, como se faz geopolítica através da ciência e tecnologia.
Foi o desmonte do Estado e eu a única que ficava defendendo a Vale do Rio Doce, que na época ainda não era privada, e a Petrobrás. Mostrava que elas eram empresas estratégicas. Isso é geopolítica também. Não interessa até se não derem tanto lucro, mas elas têm que existir porque elas são patrimônio da nação. E dão lucro pra caramba!
Como é que a senhora definiria o conceito de desenvolvimento nacional nos dias de hoje? Houve mudanças?
Pois é... Primeiro promoveu-se o desmanche: o Estado mínimo. A retomada não foi tão forte. Quer dizer, em alguns lugares sim: Venezuela, Equador e Bolívia... Mas foi muito discreto em vários outros. A questão de retomar o Estado, não foi dizendo: “Agora o Estado vai de novo...”. Acho também que no Brasil houve uma significativa retomada do Estado. Li uma coisa muito interessante na Folha de São Paulo na semana passada, com a qual concordo: o Estado nunca saiu da cena, ele tem a dobradinha com a economia, menos ou mais visível, mas está sempre junto. Há momentos em que o Estado dá outro tipo de apoio e em outros, quando se necessita, ele entra totalmente, como agora nos Estados Unidos. O articulista até dizia: – Na verdade, nós vivemos um capitalismo de Estado ainda, só que com camuflagens.– Você vai e volta. Não sei se eu diria que ainda é um capitalismo de Estado, embora nos Estados Unidos todo mundo esteja falando isso. Estão todos correndo para o Tesouro Americano e comprar dólar para garantir seus recursos. Quer dizer, o Estado, por vezes meio encoberto, está ainda atuando na verdade.
Estamos um pouco mais pró-ativos mas estamos falando, claro, num mundo que está globalizado. Então quais seriam as alternativas? O desenvolvimento da ciência e tecnologia, da especificidade desse
movimento?
Já escrevi sobre isso também, embora não nesse momento de crise. Na verdade não se pode mudar a globalização, mas pode-se mudar a relação com ela. As decisões não são comandadas pelo mercado, não. Decisões políticas são decisões políticas; no fundo elas comandam o mundo e a própria globalização, que é muito poderosa. Tudo bem, você não pode fugir dela, sair do planeta porque ela está aí, mas pode ter com ela diferentes relações: de submissão ou de mais autonomia. É aquilo o que eu estava falando. Eu sou pela relação de mais autonomia.
Vai ser difícil não se inserir no processo de globalização. Passou o tempo em que era possível se fechar no mundo e partir para uma coisa autônoma, sozinho. O Brasil teve um período assim, meio fechado no processo de industrialização, mas nunca foi totalmente fechado porque dependia de empréstimos que vinham de fora. Mas hoje é mais difícil. Mas é possível ter formas diferenciadas de relação com esse processo. E aí eu sou pela autonomia. E como é essa autonomia? Nós temos recursos pra valer, mas nós temos também uma path dependency, isto é, uma trajetória histórica institucional autoritária e que beneficia os grandes interesses, resultando em intensa desigualdade social.
Nesse nosso trabalho da Amazônia, o Prof. Francisco Assis Costa mostrou quais são as trajetórias agrárias que estão ganhando na Amazônia: é a pecuária de corte. Ele teve a ousadia de medir, fazer as correlações
de tendências das atividades agrícolas com a densidade institucional, sobretudo o crédito e mostrou que a força da pecuária de corte está associada à da densidade institucional. Essa atividade tem todos os apoios do mundo: do crédito e político.
Creio que, com esses exemplos, estou dando uma visão muito clara do que penso. Você teria alternativa no Brasil? Mas é claro que teria! Muitas alternativas. O Brasil tem recursos, tem uma população criativa. Mas
falta educação, treinamento, capacitação. Não há habilidades porque a educação é uma educação generalista, européia. Isso tem que mudar! O ministro Mangabeira insiste muito nessa tecla junto com o ministro Haddad da Educação. O Brasil teria muitas alternativas. Agora, o problema é como romper o autoritarismo. O quadro institucional trabalha em favor dos grandes. É horrível o que eu estou falando, mas acho que é verdade. Enquanto não se mudar essa situação vai ser difícil. Os movimentos sociais são muito importantes, mas só eles não resolvem.
Eles não têm capacidade institucional?
Não têm. Por isso eu tenho falado tanto em revolução científica, desde 2004, e agora muitos colegas incorporaram... Primeiro porque sou contra a idéia polarizada entre desenvolvimento ou preservação. Isso não existe! É preciso desenvolver com conservação, acabar com essa falsa dicotomia, porque é totalmente ideológica. Para utilizar os recursos sem destruir, há que se ter conhecimento e tecnologia. Segundo, a ciência e a tecnologia devem ajudar a fazer reflexão sobre a nossa situação e gerar um pensamento autônomo. Isso é fundamental para nós.
E hoje em dia acrescentei um terceiro argumento. Gosto muito do Karl Polanyi, autor do livro A Grande Transformação. Polanyi demonstrou que a passagem do processo de mercantilização para o industrialismo
se deu através da criação de mercadorias fictícias, mas que geraram mercados reais; mercado de mão-de-obra, que nunca foi feita para ser mercadoria; mercado de terras, terra que nunca foi feita para ser vendida
como mercadoria. E quem eram os sujeitos capazes de influir no mercado, para dosar o mercado? Ele aponta o Estado, as políticas públicas, movimentos sociais e sindicatos. Hoje parece que os sindicatos não têm força.
O ponto em que eu quero chegar é o seguinte: hoje a comunidade científica é um ator crucial com o mesmo papel que tinham os sindicatos na época da passagem para o industrialismo. Nós temos que esclarecer a
população e a sociedade e dar subsídios ao Estado, para fortalecê-lo na negociação com o mercado, para impedi-lo de dominar tudo. Faz sentido o que eu estou falando? É isso. A densidade institucional é toda em favor do capital, e do mais selvagem, digamos assim. Quem vai hoje lutar contra? Não são apenas os sindicatos. Nós temos que assumir esse papel! Vocês estão de acordo comigo? Nós temos que assumir esse papel crucial.
Por essa razão estou andando muito na mídia agora. Fiz dois artigos esse ano para o jornal, faço 500 entrevistas, vou para mesa redonda, vem o Globo Repórter. Não é o que eu queria não, mas acho que temos obrigação. Estou convencida. Por isso eu fiquei muito feliz quando a Academia de Ciências lançou o documento sobre a Amazônia, foi importante. Se não formos nós a fazer este papel, quem vai ser? Não será a mídia, porque ela é bastante cerceada pelos grandes interesses. Não é uma coisa fácil porque a comunidade é muito fechada na sua torre de marfim mas temos que insistir em sua mobilização.
Dentro da própria comunidade científica, quem se expõe acaba sendo alvo de críticas...
Mas não tem problema. Eu enfrento as críticas. Eu consegui fazer uma carta e tive 20 assinaturas de apoio ao Geoma2. A Folha de São Paulo não coloca os nomes, mas estavam lá os Drs. Gilberto Câmara, Luiz Bevilacqua entre outros. Assinaturas de primeira linha para a minha cartinha. Há que continuar insistindo. Fiz para o Ministro Mangabeira Unger dois estudos, um sobre os serviços ambientais e o outro sobre articulação da cidade com a floresta, tema que ele queria abordar e é também o meu projeto do CNPq. Então, pergunto: o que é a floresta hoje? Eu a considero a fronteira do capital natural. Eu sempre estudei a
fronteira em movimento, mas a revolução científica e tecnológica valorizou a natureza como capital natural, não se pode esquecer isso. Então é preciso olhar a natureza agora, o valor que ela tem como capital natural.
O Mangabeira fala: “A Amazônia com mata e a Amazônia sem mata.” E eu queria falar da minha floresta, a fronteira do capital natural, a Amazônia com mata.
O IBGE ofertou-me uns mapas novos que fizeram sobre a vegetação original da Amazônia (acho que em 1500), e a vegetação em 2006. Qual a reação de todo mundo? “Ai, que destruição! Aquele vermelho...”
O meu insight foi outro. É impressionante como o núcleo central da floresta ainda é bastante íntegro. Isso pra mim foi novo, abriu novas possibilidades.
A Rede Geoma é a primeira Rede de Pesquisas do Ministério de Ciência e Tecnologia que integra 6 unidades de pesquisa deste Ministério, sendo três sediadas na região Norte: Instituto Nacional de pesquisa da Amazônia- INPA/AM, Museu Paraense Emilio Goeldi – MPEG/PA e Instituto de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá – IDSM/AM e três no Sudeste: Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - INPE, Instituto de Matemática Pura e Aplicada -IMPA e Laboratório Nacional de Computação Científica - LNCC.
Ao invés de ficar chocada com o avanço do desmatamento pensei: “Olha como o núcleo...” Ainda está inteiro. Estou chamando-o de coração florestal. A natureza, a floresta, tem um zoneamento próprio, dela mesma, vocês sabiam disso? Tem o que se chama de mata ombrófila densa, que é esse coração florestal; segue-se a mata ombrófila aberta, ainda tropical, mas, não é densa; e depois matas de transição para o cerrado. O povoamento e a fronteira agropecuária em movimento se deram e estão se dando na mata de transição e na aberta. E parece que o coração florestal quase impediu o avanço da fronteira. Os grandes eixos viários foram abertos no cerrado e na mata aberta, aproveitando as áreas de menor resistência; mesmo a Transamazônica está no contato de mata aberta com mata densa. É impressionante, eu não tinha me dado conta.
Existe ali uma barreira da natureza?
Sim, é uma muralha. E há uma dimensão ideológica muito importante, sabe por quê? Porque não se pode mais falar de uma mata amazônica, uma floresta amazônica vaga. Onde está essa floresta? Onde está a mata? Isto vai discernir a ideologia da ciência. A ideologia que fica dizendo: “Vamos preservar a Amazônia.” Onde está o que deve ser preservado? Parece uma coisa à toa, mas é um insight básico para informar ações necessárias. Por exemplo, preservar, conservar. Hoje, o que tem a ser conservado é o território da mata densa, porque a mata aberta foi bastante destruída, dela permanecendo resquícios.
Isso não significa abandonar o resto ao seu bel prazer. Não, é para conceber estratégias diferenciadas para as diferentes áreas. O coração está aí pedindo urgentemente uma estratégia de defesa que não vai ser, na minha opinião, por áreas protegidas e intocadas, porque isso não vai proteger nada. A defesa deve ser através da produção de produtos não-madeireiros e de serviços ambientais, utilizando-os sem destruir a natureza. Esse coração florestal corresponde ao médio e baixo curso dos afluentes onde domina a circulação fluvial. Os altos cursos estão na mata aberta.
Eu estou fazendo uma consultoria para a Agência Nacional de Águas, que está estudando os afluentes da margem direita do Amazonas e eles estão incorporando essa idéia no projeto.
Mas a Amazônia é sempre tratada como um bloco indiferenciado... Isso está muito errado, ela sempre foi heterogênea. Os ecossistemas são extremamente heterogêneos. E as sociedades, as tribos são diferentes. Mesmo a formação histórica dos diferentes estados. Enquanto no coração florestal deveriam ser implementados os produtos não madeireiros e os serviços ambientais, a mata aberta é o lugar da pecuária e da madeira. Creio que se devia fortalecer a indústria madeireira porque a pecuária já vai bem, obrigada,
cheia de frigoríficos, não precisa de ajudinha não. Mas a madeira é totalmente desperdiçada, e elas andam juntas. A pecuária entra, a exploração da madeira também. Então deve se dar atenção à madeira, à industria florestal.
Agora, o mais importante nesse coração florestal é a borda oriental do bioma Amazônico sul-americano; o pedaço do bioma localizado no Brasil. Olha a importância! Se houver uma estratégia adequada para tratar
essa área, ela pode transmitir para a Amazônia sul-americana.
Que avaliação a senhora faria hoje sobre o ensino de ciências humanas e da Geografia em si? É possível fazer alguma projeção?
Nem sei se houve uma desvalorização, elas nunca foram valorizadas devidamente, vamos dizer a verdade, não é? Eu acho que é um erro enorme porque muita coisa que se comprova na Física, na Matemática. Nas
Ciências Humanas há muito tempo, por exemplo, já se falava no livrearbítrio e no determinismo. Essa é uma questão antiga, e muito depois vieram a leis da probabilidade mostrando a diferença do determinismo e daí
enormes avanços. Mas quando começou? Quando é que veio a Física e colocou essa lei da probabilidade? Foi final do século XIX, passagem para o século XX, quando há séculos se discutia a questão do livre-arbítrio e determinismo. Estou dando este exemplo porque é uma questão crucial humana, discutida historicamente, que passa a ter uma expressão física quantitativa, mas estava aí na cabeça de todo mundo há muito tempo.
Talvez hoje em dia tenhamos que fazer muito mais pesquisa integrada porque os avanços estão vindo muito da convergência tecnológica, da fusão de disciplinas. Por exemplo, na Amazônia há uma falta enorme
de Ciências Humanas. Não falta só Arqueologia e Antropologia; faltam Ciências Sociais, Humanas e Políticas para as cidades, para o consumo, a produção, a indústria, a navegação, o desenvolvimento da região. Não se pode pensar só nos índios e na biologia. Eu defendo a floresta, mas nem por isso vou deixar de ver que tem gente lá.
Fiz um estudo para o Dr. Cylon Gonçalves que era diretor da Secretaria de Programas Especiais do MCT em 2004, afirmando “As Ciências Humanas fazem falta” ele achou que eu tinha toda a razão. Porque se
não pode pensar o desenvolvimento de uma região só em termos físicos, matemáticos ou biológicos.
E quanto às agências de fomento, há possibilidade de se interferir na política de financiamento? Hoje são lançados editais procurando formar redes, mas saem fechados por áreas.
É, eu sei. Vi, por exemplo, que o pessoal da Amazônia teve uma reação enorme quando começaram a sair esses editais em rede. Acharam que era uma coisa que lhes prejudicava porque eles não têm esse traquejo.
Não esqueçam que a pesquisa na Amazônia é uma pesquisa de inventário, taxonômica. De repente, tem que ter rede...
Li uma porção de textos deles quando fiz o trabalho para o Dr. Cylon. E fiquei boba de ver a reação! Eles se acharam muito prejudicados e acharam difícil organizar uma rede de uma hora para outra. Mas é necessário integrar mais. E vou lhes dizer algo importante: perguntei à FINEP se seria possível fazer um pedido de projeto pensando numa cadeia produtiva. Fulano entra para fazer pesquisa básica, outros para analisar a produção, o mercado, a circulação, etc. E eles disseram que pode. Acho que seria genial, porque daria uma lógica para a interdisciplinaridade.
Eu, por exemplo, estou lutando e quero estimular a formação de cadeias bioprodutivas. Então vamos arrumar quem pode investigar a produção, o transporte, o processamento. Não posso fazer isso sozinha mas teríamos que conceber algo nesse sentido. E com empresários, sabe? Há que inserir os empresários porque senão a dimensão econômica não se torna viável. Sei que o Laboratório Aché, por exemplo, está tentando desenvolver remédios brasileiros. E a Fiocruz já se instalou em Manaus e o Butantan em Santarém, favorecendo as pesquisas. Bem, eu já falei o que queria. Obrigada.
Fonte: Cadernos de História da Ciência – Instituto Butantan – vol. IV (2) jul-dez 2008
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