segunda-feira, 5 de novembro de 2012

GEOSUL - Entrevista com a professora Bertha Koiffmann Becker


Entrevista realizada dia 19 de julho de 2006, em Florianópolis, que teve a participação dos professores Ewerton Vieira Machado, Sandra M. de A. Furtado e Maria Dolores Buss. Texto revisado e autorizado pela entrevistada (bbecker@acd.ufrj.br).

Geosul - Começamos a entrevista com uma pergunta muito característica: onde nasceu, como era sua família, seus primeiros anos...
Profa. Bertha – Eu nasci lá no samba, no samba me criei e do danado do samba nunca me separei... Bom, nasci na Tijuca, no Rio de Janeiro, em frente à Igreja de São Francisco Xavier, e vivi minha infância nos jardins da igreja; a babá me levava todo o dia. A gente morava em um sobrado e abaixo da minha casa tinha uma vila e eu me dava com as crianças da vila, jogava carrapicho quando as pessoas passavam; adorava pegar a caixinha das alianças na igreja. Fiz o primário no Colégio Sholem Aleichem israelita, até o terceiro ano primário; depois nos mudamos para o Flamengo e aí fui para o Colégio Bennett, e fiquei lá até o fim do ginásio.

Geosul – E seus pais? Em que trabalhavam?
Profa. Bertha – Meus pais foram imigrantes. Meu pai veio em 1914 da Romênia; pressentiu que ia estourar uma guerra e com alguns amigos migrou para o Brasil; os amigos vieram na frente e ele veio depois. Quando chegou passou um dobrado, foi vendedor de porta em porta. Conseguiu acumular alguma coisa e comprou uma fábrica de móveis, lá na Praça Onze. Minha mãe veio da Ucrânia em 1918 com a família, pois a situação lá era muito ruim para os judeus; bandos entravam nas aldeias e matavam muitos judeus. Atravessou o rio Dniester, foi para a Romênia e lá pegou um navio. E veio morar em Niterói. Aqui se conheceram, se casaram, e tiveram três filhas, a Fanny, mais velha, a do meio que não fez geografia e é pedagoga, e eu, a caçula. O meu pai tinha esta fábrica de móveis e minha mãe sempre foi uma ativista social dentro da coletividade judaica; meu pai também ajudava nisto. Naquela época tinha uma grande divisão na coletividade judaica entre os sionistas – aqueles que queriam lutar e ir para Israel – e os progressistas que achavam que tinham que se ajustar à nova terra como é o caso de meus país. Meu pai trabalhava em instituições educacionais e foi um dos fundadores do Instituto Brasileiro de Cultura e Educação, que tem uma escola e um coro com pessoas de diversas idades. Minha mãe era ativista em outro sentido, ajudou a criar muitas instituições como o lar dos velhos, o das mulheres, e principalmente o Lar das Crianças, onde trabalhou a vida inteira, até quando morreu aos 92 anos, e ainda fazia campanha pelo telefone.

Geosul – Nesta época era grande a comunidade judaica?
Profa. Bertha – Não era das maiores. Tinha uma comunidade judaica grande no norte do Brasil, os sefaradi desde o tempo da Inquisição e depois mais recentemente, os que vieram do Egito, do Marrocos. Mas é diferente da dos meus pais que eram asquenazi. Meus filhos fizeram escolas primarias judaicas, mas nenhum deles casou com judeus.

Geosul – E quantos filhos tem?
Profa. Bertha –Tenho três filhos, duas mulheres e um homem. E oito netos.

Geosul – E o ginásio onde fez?
Profa. Bertha – Ginásio no Bennet e no Andrews o curso clássico. E de lá fui para a geografia.

Geosul - Que ano entrou na geografia? E o que lhe marcou na faculdade?
Profa. Bertha – Entrei no curso, que na época era Geografia e História em 1948 e passei em primeiro lugar. Era na Faculdade de Filosofia que ficava na Casa de Itália, prédio que tinha sido confiscado pelo Brasil na guerra. Lembro do Hilgard Sternberg que na época me convidou para ser sua auxiliar de ensino. Lembro que tive poucas aulas, mas brilhantes, com o Josué de Castro, antes dele sumir. E do Arthur Ramos, que era um grande antropólogo.

Geosul – Por que escolheu a Geografia?
Profa. Bertha – Eu sinto que herdei esta coisa da fronteira, de descobrir o mundo dos meus pais. A travessia. Por isso que estudo fronteira até hoje. A nossa Páscoa, que em geral coincide com a Páscoa cristã, em hebraico tem o nome de Pesach que significa travessia; era a libertação dos escravos egípcios; é a festa mais bonita dos judeus. Pesach cada um traduz como quer, mas eu acho que é travessia; a saída do Egito, a travessia do deserto para chegar na Terra Santa. Então a fronteira para mim é muito importante, vivida. Estudo fronteira desde os anos 60. Estudei e escrevi a organização da pecuária, o gado tomando áreas de mata, que foi uma revolução, já que antes sempre ficava no campo, ou na caatinga. Comecei a pesquisa, quando o gado começou a ocupar áreas de mata. Eu ia para o campo – e sempre fiz pesquisa de campo, é uma característica da minha formação; sempre procuro ligar teoria e prática, ainda mais em um país como Brasil, onde as coisas mudam do dia para a noite – querendo entender o sistema de abastecimento do Rio de Janeiro, que eu achava que estava mudando. Fui para Minas Gerais, até Montes Claros, onde o gado estava ocupando as áreas de mata. Depois fui para o Triângulo Mineiro aonde na época já fazendeiros, iam de avião abrir a mata em Crixás, Goiás. De lá fui para o oeste de São Paulo, vi a nova organização da pecuária. Juscelino com estradas e a industrialização permitiu que; os matadouros se transformassem em frigoríficos e a pecuária começou a avançar. Então peguei a fronteira no início. Depois fui para a Amazônia. E a Amazônia entrou na vida também porque durante dez anos, de 1966 a 1976, dei aulas no Instituto Rio Branco, para os futuros diplomatas brasileiros.

Geosul – E nesta época já era professora da UFRJ?
Profa. Bertha - Eu pulei um pouco. Vamos voltar. Eu entrei como auxiliar de ensino em 1958. Dei aulas de muita coisa, aprendi muito da física e da humana. A Maria do Carmo Galvão era assistente do Hilgard e eu era auxiliar de ensino. Em 66 o Arthur Weiss que era o professor de geografia do Rio Branco, faleceu e pediram um outro professor de geografia. A Maria do Carmo não se interessou e eu me interessei; também pelo dinheiro, porque na época resolvi fazer psicoanálise, já que me sentia muito tolhida e não ia pedir dinheiro para o marido. E resolvi aceitar. Se até hoje, com 75 anos, vou para todos os lugares e faço tanta coisa que jovem não faz, imagina na época. Fiquei atuando nas duas instituições até o Instituto Rio Branco mudar para Brasília.

Geosul - E trabalhou também na Fundação Getúlio Vargas?
Profa. Bertha – Lá dei alguns cursos. Mas quero voltar ao Instituto Rio Branco, que tinha um programa imenso de geografia, uma loucura. Pensei: vou ter que mudar; procurar alguma coisa interessante para esses futuros diplomatas! E descobri a Geografia Política, que naquela época estava muito escondida. E nunca mais deixei a Geografia Política. E eu sempre falava para o embaixador, que era o chefe, que deveria levar os alunos para conhecer o Brasil, pois eles eram oriundos das metrópoles. E acho que foi em 1972, que se criou o Projeto Cisne. Havia um avião da FAB a nossa disposição, uma representante do Itamaraty, e fomos primeiro recebidos em Corumbá, em Cáceres. Preparei os alunos com a teoria centro-periferia, do John Friedmann e apliquei para a América Latina. E foi um barato! Paramos no Forte Príncipe da Beira, em Guajará Mirim, em Cruzeiro do Sul; apaixonei-me pela Amazônia e nunca mais a larguei. E em 1971, foi criado o curso de Pós-graduação em Geografia na UFRJ. E eu não possuía título nenhum, pois sempre pude autodidata, tinha só especialização em didática; nunca tinha podido estudar fora, pois era casada. E apareceu uma chance no Instituto de Geociências para favorecer a geologia, o concurso para Livre-Docente. E resolvi fazer. Quando descobri tinha três meses para fazer a tese. Conversei muito com a Lísia Bernardes e resolvi juntar o que sabia sobre pecuária, com uma área que estava em crise com o café, que era o Espírito Santo. E fui para lá com uma caminhonete da universidade e duas alunas. O Instituto Café fazia a erradicação do café e eles me ajudaram com carro inclusive, pois o da universidade tinha quebrado. Fiz a pesquisa no Município de Pancas, e o trabalho foi publicado na Revista Brasileira de Geografia: O norte do Espírito Santo – região periférica em transformação, em 1970. Então fiz a tese de livre-docência em três meses.

Geosul - E quem foi a banca?
Profa. Bertha - Uma banca de peso: Dr. Fábio Macedo Soares Guimarães, Dr. Otto Henry Leonardos, Nilo Bernardes, Pedro Geiger. Era um exame medieval: prova de títulos, aula, trabalho escrito, e defesa pública.

Geosul – Falou antes na Lísia Bernardes, e que outros geógrafos tinham influência na época na UFRJ?
Profa. Bertha – Orlando Valverde, que faleceu há pouco, Pedro Geiger, minha irmã Fanny, Faisol; o Milton chegou depois.

Geosul – Conte um pouco sobre a sua participação na AGB e na UGI.
Profa. Bertha – Participei da AGB em Montes Claros; mas tive filhos e fui a poucos encontros. Depois me desliguei um pouco, mas quando me convidavam ia. Fui a Salvador e Belém. Depois a AGB ficou ultra-sectária e não convidava mais a gente. Na reunião deste ano, em Rio Branco, me convidaram, com o Carlos Walter, para fazer a palestra de abertura. Na verdade atualmente não tenho mais muita paciência para congressos. Quanto a UGI: eu freqüentava a UGI; fui a um congresso na Índia que tinha uma Comissão de Desenvolvimento Regional com um monte de gente importante, como o Brian Berry. O Itamaraty me deu a passagem e fui. E me tornei secretária desta comissão, cujo presidente era o Nilo Bernardes. Fui à URSS; fiz um trabalho no Japão; conheci um monte de gente. Na reunião de Viena, eles queriam que eu fosse presidente da Comissão, mas recusei. Era muito trabalho chato: fazer contatos, escrever para um monte de gente; e eu escrevo tudo à mão! Quando eu ia aprender a lidar com computador, meu marido ficou doente por sete anos. Uma tragédia. Depois que ele faleceu, entrei em um ritmo de vida, que não há espaço para apreender computador. Mas eu ainda queria dizer que acabei sendo eleita uma das vice-presidentes da UGI por quatro anos. A Anne Buttimer trabalhava comigo. E eu não quis mais, devido à politicagem. Depois fiquei totalmente absorvida com o Brasil.

Geosul – Como avalia hoje as transformações que aconteceram na Amazônia na sua inserção à vida nacional e nas relações do Brasil com o mundo?
Profa. Bertha – Quando entrei no Itamaraty era o tempo da “integração nacional”. Lancei o livro Geopolítica da Amazônia, em 1982 numa reunião da UGI, no Rio de Janeiro, em que eu era secretária científica; fiz o programa daquele evento, que foi elogiado internacionalmente. Este é um livro de crítica às estratégias políticas, pois tinha a luta pela terra, os conflitos com os fazendeiros. Analisei por muito tempo a expansão da fronteira, no período do programa de integração nacional, em que estenderam as estradas, incentivos fiscais, e havia também a preocupação com as guerrilhas, como a Guerrilha do Araguaia. Às vezes eu dou uma de boba sem saber: desenvolvi uma logística de campo com carros de DNER e ficava nos alojamentos para os engenheiros; e lá ia eu pelas estradas afora, com minhas alunas, como a Lia, a Maria Helena, Xingoara com carro do DNER. Depois fui saber que o DNER ajudou a polícia a desbaratar a Guerrilha do Araguaia, por lá. E era lá que a gente ia! Então estudei muito os conflitos, as estratégias, os processos de colonização, os posseiros, a abertura da Transamazônia: acompanhamos isso passo a passo. Lancei a idéia que acho importante até hoje, Amazônia como floresta urbanizada. Não é que ela seja urbana, mas é no sentido na concentração da população que é mobilizada a partir dos núcleos urbanos de vários tamanhos, para tarefas urbanas e abertura das frentes, configurando intensa mobilidade da população e conflitos. Estudei isso por toda a década de 70, e saiu o livro em 1982. Na década de 1980 a criação do Conselho de Seringueiros foi simbólica. E todos os movimentos sociais na Amazônia, ou quase todos, tiveram como base a Igreja Católica. Foi ela quem organizou, ensinou. E lá no Acre a Igreja se juntou com os sindicatos. A resistência teve Chico Mendes como símbolo, mas em vários lugares a igreja organizou a população e teve um papel fundamental. Por outro lado, ela introduziu a idéia de propriedade da terra que não existia; todos os caboclos eram isolados, se juntavam de vez em quando para festejos de santos, mas não tinham a noção de comunidade, nem da propriedade privada. E acho isso complicado porque ter só a terra não adianta nada. Mas eu penso isso hoje, porque na época achava justo, para melhorar as condições do povo. Se você tem só a terra sem o resto, não adianta nada. A resistência social, muito justa, foi cooptada pela ideologia ambientalista, que entrou pesado. Coincidiu a resistência social com a crise do Estado brasileiro, devido aos choques do petróleo e a dívida externa, isto é, com a fragilização do Estado, e a pressão internacional pelo ambientalismo. Juntou tudo isso na década de 80 e aí criaram o Conselho Nacional dos Seringueiros que foi um marco! Isto está em outro livro. A pressão ambientalista nacional e internacional tornou-se muito forte na Amazônia: em 1989 foi criado o Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais Brasileiras, pela União Européia, o G7 com a gestão do Banco Mundial. Por isso todo mundo chama de PPG7. E era dinheiro para preservação, isto é: não tocar! Tinha um grupo internacional de acompanhamento do programa, e eu fui indicada pelo Brasil para acompanhar esse programa, em 1993. Então participei desde o seu lançamento, de 1993 até 2004; fiquei onze anos neste grupo internacional, guerreando com o Banco Mundial e as pressões internacionais. É bom que se diga porque cada um tem suas guerras. A minha grande guerra foi esta! Para não ficar só na preservação! Só se pensava nas árvores, queriam transformar a Amazônia em um museu, tinha que se pensar também na população. A gente tinha que ficar de olho aberto! Claro que não era eu sozinha, o coordenador era o Seixas Lourenço e o Wanderlei Messias, da USP, trabalhava com ele. Depois saiu o Seixas Lourenço quando mudou o governo e entrou a Mary Helena Alegretti. Ela foi guru do Chico Mendes, é muito inteligente e fez uma boa coordenação. Fiz consultorias para ela, e fui entendendo mais as coisas. Eu sempre fui contra o preservacionismo, e tenho muitas coisas escritas dando a minha interpretação geopolítica. O ambientalismo tem duas raízes: uma legítima, de preocupação com a vida; mas tem outra que segue a lógica da acumulação, para quem a natureza tornou-se um bem escasso. E por acaso convergiram para o projeto conservacionista por objetivos completamente diferentes. Então as Unidades de Conservação tanto eram para proteger mesmo, como para reserva de valor, para uso futuro na lógica da acumulação. Desenvolvi muito isto, tanto em artigos como em livros. A minha guerra com o Banco Mundial, no PPG7, era muito neste sentido. Para mim a Amazônia é um dos três eldorados naturais contemporâneos: a Antártida dividida entre as potencias, os fundos marinhos, não regulamentados juridicamente ainda, e, a Amazônia Sul-americana, o único eldorado sob soberania de Estados. Por isso me chamam de desenvolvimentista. Pois quer saber: eu quero mesmo é o desenvolvimento! Não o desenvolvimento que destrua a natureza, mas um desenvolvimento que consiga melhorar as condições da população brasileira. Pois no momento acho que o maior problema do Brasil é a exclusão social. Ainda bem que o Brasil tem um território grande porque se não já tinha explodido há muito tempo. A fronteira tem sido usada muito como válvula de escape.

Geosul – Tem um artigo do Washington Novaes para o Jornal o Estado de São Paulo em 2005 em que ele reproduz um trecho seu que é: “a floresta só deixará de ser destruída se tiver valor econômico para competir com a madeira, a pecuária e a soja”. Gostaríamos que comentasse um pouco isso.
Profa. Bertha - Mas espera aí, vocês não querem saber a história toda? Em todas essas brigas no PPG7 nós conseguimos mudanças e também nestes anos, o mundo mudou: a lógica da acumulação está cada vez mais forte, com a globalização, em vez da lógica civilizatória, cultural, social. Agora eles querem usar as reservas de valor. Mercantilização da natureza! Vou falar isto um pouco amanhã na SBPC. Você vê os impactos contraditórios da globalização para a Amazônia: por um lado, mercado de proteínas, da soja, do gado. O Brasil é o maior exportador de carne, mas vem a guerra da aftosa, porque sempre tem uma pressão internacional. A soja e o gado entrando na floresta; desterritorialização, mortes, assassinatos, tentativas de abrir a BR 163 como um modelo diferente de estrada. Por outro lado, as reservas de valor da década de 90 começam a serem utilizadas: mercantilização do ar, da vida, da água. Protocolo de Kioto é o mercado do ar. Falei isto agora na semana passada para os religiosos na Amazônia (Encontro: Amazonas, fonte de vida): os senhores, hoje de manhã, foram excelentes nas suas posições sobre moral e ética, mas acho que deveriam se preocupar um pouco com a mercantilização da natureza. Sou abusada! Falam tanto em ética, moral... E até hoje não vi um tostão deste escambo. Estou vendo que o ambientalismo se esgota. As unidades de conservação não estão conseguindo frear a expansão do gado e da soja. Invadem, destroem, matam. A Irmã Doroty foi uma; mas matam milhões lá na BR163. E depois a Amazônia mudou, não é mais a mesma de 1960, quando começou a Programa de Integração Nacional. A sociedade não fica congelada. Hoje a sociedade tem demandas. Houve mudanças estruturais fantásticas na Amazônia. Na estrutura da economia: a Zona Franca de Manaus, a extração mineral,... Você sabe que o Estado do Amazonas teve o terceiro ou quarto PIB do Brasil! Mas há problemas! Não cresce sem problemas. Agora tem os royalties e deve se usá-los adequadamente. Mudou a conectividade pelas telecomunicações, favorecendo a entrada da ideologia ambiental pelas relações locais e globais. A Igreja perdeu lugar para as ONGs. Agora para as evangélicas. Chego à conclusão que o ambientalismo não está conseguindo conter o gado, nem está conseguindo atender as demandas da população, que se organizou em movimentos; só os índios têm quantas associações? A organização da sociedade civil foi inovadora e intensa.

Geosul – E o SIVAM vai mesmo funcionar?
Profa. Bertha – Até agora não mostrou direito a que veio. Na verdade, eu sei: o SIVAM/ SIPAM veio como resposta do Brasil às tentativas de interferências no território. O Brasil é todo cercado de bases americanas, desde a América Central até o Paraguai. E a Colômbia é a maior expressão deste movimento de militarização. Mas uma vez em Tabatinga – faço conferências para a CNBB, para os militares, acho que é o meu papel como cidadã – eu estava falando para um coronel e disse que achava que havia uma militarização e o Brasil estava virando uma ilha cercada de bases militares. E ele disse que eu tinha razão, mas que o correto não era chamar de militarização, que é um movimento interno, quando os militares sobem ao poder; o que está havendo não era isso, mas sim uma presença militar, pois é externa. Agora estou preocupada em soluções alternativas, estou farta de denunciar. É urgente encontrar caminhos, senão vão arrebentar a floresta. Tem que atender as demandas da população, como trabalho e renda. O que adianta fazer um monte de unidades, que não barram a soja, a extração de madeira, e nem dão trabalho para a população? Tem que haver crescimento econômico com inclusão social sem destruir a natureza. Então falei isso: enquanto não atribuir valor às florestas, não vão competir com as commodities. Compatibizar e não polarizar desenvolvimento e conservação é o grande desafio que se coloca para a ciência e a tecnologia.

Geosul – E como se faria isso?
Profa. Bertha – Eu já pensei um monte de coisas, mas também vocês querem a receita toda! Tão querendo tudo! Eu não perco o meu bom humor! Mas voltando ao sério. Eu coloquei esta tese: enquanto você não atribuir valor para a floresta, ela não vai competir com as commodities, com a madeira, com a soja e com o gado. Agora os ministérios me chamam muito; nem tanto o Ministério do Meio Ambiente, embora a ministra Marina Silva e o Senador Sibá Machado dizem ouvir o que digo. Trabalhei no Plano da Amazônia Sustentável (PAS) que fizemos há três anos atrás, e que o governo engavetou. Trabalhei durante um ano no Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável da BR163, Cuiabá-Santarém. E o MCT me convidou para fazer um estudo incluindo uma proposta de política de ciência e tecnologia. Propondo que a Amazônia precisa de uma revolução científico-tecnológica. O Brasil já fez várias, como a exploração de petróleo em águas profundas, transformação da cana em álcool combustível, uso do cerrado para soja. O que era o cerrado? Gado pé duro! A EMBRAPA foi fundamental. O pessoal fala muito mal da EMBRAPA, mas ela mudou muito, e está fazendo um excelente trabalho de pesquisa para o produtor familiar! Fui para o campo, falei com muitas pessoas, desde empresários a cientistas e propus isto: a valorização da floresta através do uso da biodiversidade em cadeias técno-produtivas, desde a floresta até chegar à indústria na cidade. Agora na palestra de abertura da AGB, no Acre, falei sobre isto, e o Carlos Walter me disse: você deve falar sócio-tecno-produtivas. Que seja! É isto que o Washington Novaes comentou.
Geosul – Atribuiria isso como as resignificações para as políticas públicas na Amazônia?
Profa. Bertha – Sem dúvida. Eu lembro três estratégias: não se pode fazer assentamentos, modelito do INCRA da década de 70, jogar a população no meio do mato e dar 100 hectares tendo que preservar 80 e usar 20, sem tecnologia, longe do mercado e das estradas. Como uma população pode fazer isto? Sabe qual foi o índice de evasão dos assentamentos em torno de Santarém? 70%! Preciso de outro índice? Então tem que ter escala mínima de produção e logística adequada. O grande problema da Amazônia é a logística, mas não igual a das outras regiões. A revolução científico-tecnológica tem que pensar em isto tudo. Não é uma revolução positivista. Há que fazer mudanças no quadro institucional, que é uma das coisas mais difíceis hoje, bem como regionalização. Não pode pegar a Amazônia inteira e trabalhar como se fosse uma coisa só. Estou dando a vocês elementos dos meus modelos.

Geosul – Então dentro desta linha, o seu conceito das três macrorregiões amazônicas foi incorporado no PAS. Poderia falar um pouco mais sobre isto?
Profa. Bertha – É verdade. Em 1998 a Mary Alegretti, coordenadora da Secretaria da Amazônia, me pediu para fazer um cenário sobre a Amazônia. Espremi a cabeça, fiz uma reflexão, não sou muito de números e reconheço que é um ponto falho, mas faço minhas reflexões. Então pensei como o povoamento da Amazônia, a conectividade, a estrutura econômica, a sociedade mudou o território! Ela não é toda igual. Então identifiquei três regiões na Amazônia. Uma que todos chamam arco de desmatamento, e que chamei de arco de povoamento em consolidação. Não se pode dizer que toda a área da soja, mesmo aquela da Belém-Brasília que já foi desmatada, que tem Carajás pecuária, indústria de couro, ainda seja chamada de arco de desmatamento. Na borda ainda há desmatamento, mas no resto não. A outra é a Amazônia que chamei de central, ou oriental, que para mim era a região mais vulnerável porque ali iam passar estradas, e foi justamente o que aconteceu com a BR 163. E a Amazônia Ocidental que é a mais preservada, pois não passam estradas. Mas por que fiz isto? Para cada uma fazer um balanço entre vulnerabilidades e potencialidades que deveria embasar as políticas públicas. Então, no arco de povoamento em consolidação, qual é a política? A política ali é consolidar o povoamento. Na região mais vulnerável a política sugerida era fortalecer a conservação; falei isto há quase 10 anos. E olha o que aconteceu! E na Amazônia ocidental, mais preservada, é onde se tem as condições para o desenvolvimento sustentável. E infelizmente falei certo, porque acabou arrebentando tudo na área mais vulnerável.

Geosul – E por curiosidade, como é a questão da droga na Amazônia?
Profa. Bertha – Isto vocês devem perguntar a Lia Osório, é ela que vem estudando isto. A droga encontra na Amazônia muito espaço. O povo não tem trabalho e são presas fáceis da droga. Em Tabatinga não tem uma família que não tenha um membro metido nas drogas. Começa por aí. O Brasil é passagem. Mas tem o Projeto Cobra da Polícia Federal que é muito atuante.
Geosul – Como vê as pós-graduações no Brasil, já tendo sido presidente da ANPEGE?
Profa. Bertha – Não pergunte isto. Acho que o grande problema hoje é o individualismo. Estou falando na minha universidade. Quanto à ANPEGE, na época não pude me dedicar muito. Mas fiz um encontro interessante lá no Rio e depois pegaram o material e publicaram sem o meu nome. O Milton até ficou danado! Mas antes disto tinha feito uma reunião da UGI que foi um excelente. Publiquei em livro: A geografia política e o desenvolvimento sustentável, ed. UFRJ.

Geosul – Gostaríamos que contasse um pouco de sua experiência com outros geógrafos brasileiros.
Profa. Bertha – Sempre me dei muito bem com o pessoal do IBGE, da USP, de Minas Gerais, Manoel Corrêa, com o Carlos Augusto e muitos outros. Mas é claro que vocês querem saber do Milton Santos. Nós dois éramos os mais cordiais inimigos. Quando ele chegou ninguém o queria nos cursos, diziam que era muito complicado. Eu bati pé e convidamos o Milton e também o Maurício Abreu, porque inauguramos a pós-graduação na, UFRJ e precisávamos de doutores e Milton era um expoente. Tive a maior boa vontade e vim a gostar muito dele. Se estivéssemos sozinhos, a gente se dava bem, e trocava, mesmo confidências, mas em público...

Geosul – Devido ao adiantado da hora e seus compromissos amanhã na 58ª. SBPC, a gente encerra a entrevista agradecendo muitíssimo.

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