segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O Pensamento de Bertha Koiffman Becker – formação e produção acadêmica


Eduardo Karol
Professor Assistente da UERJ – FFP
eduardokarol@ig.com.br


Introdução
Bertha K. Becker é geógrafa conhecida no Brasil e no exterior por seus trabalhos sobre fronteira e geopolítica amazônica. Entretanto, se consultarmos sua produção de começo de carreira, vamos nos deparar com temáticas distintas das citadas.
O objetivo desta exposição é apresentar a formação e a produção acadêmica dessa cientista, bem como, na medida do possível, dada a restrição de corpus, nelas iniciar um aprofundamento. Para tanto, pesquisamos em memorial, currículo, artigos e livros a trajetória de formação acadêmica e a sua produção, que são expressões de conjunturas diversas. Vamos nos ater somente à formação acadêmica e ao que chamamos de Primeiros Artigos e Segunda Fase, que englobam a produção da autora até a publicação do livro Geopolítica da Amazônia, no início da década de oitenta.
A formação da pesquisadora realizou-se, em grande parte, na Universidade do Brasil, atual UFRJ, e compreende o período da graduação, no final da década de quarenta, até o doutorado, na década de 1970.
Como resultados preliminares podemos identificar uma modificação na temática de análise da geógrafa. Os primeiros artigos datam da década de sessenta e versam sobre mercado de abastecimento, migrações internas e índices climáticos no nordeste. Nos anos setenta os trabalhos expõem temas como a estrutura espacial, a periferia em transformação, a fronteira e a sua espacialidade, geopolítica da Amazônia. Constatamos que o livro A Geopolítica da Amazônia contém a produção de dez anos de pesquisa. Esse livro é considerado, na geografia, uma referência para os estudos de fronteiras de recursos no Brasil.
A identificação com a Geografia do Brasil é marca da formação e produção da autora. Enfocando esse aspecto, podemos pesquisar e extrair uma forma própria de pensar a dinâmica espacial da sociedade brasileira. Como a própria autora escreveu que a “identificação com a Geografia do Brasil que, por sua vez, [a] conduziu a conceber a disciplina como ciência política. Descobrir e participar da construção do projeto do Brasil como parte do projeto da Terra, eis o sentido de minha atuação acadêmico-profissional, profundamente imbricada à minha própria grafia”, Becker 1993.

Formação
Graduou-se em geografia e história, no final da década de quarenta e início dos anos cinquenta, pela Universidade do Brasil, atual UFRJ. No ano de 1954 especializou-se em geografia e história pela mesma instituição, sendo que em geografia foi orientada pelo professor Hilgard O'Reilly Sternberg apresentando um trabalho sobre Geografia do Brasil. Já em História contou com a orientação da professora Maria Yeda Linhares, com um trabalho sobre História Contemporânea. Nos anos de 1969 e 1970 obteve o título de doutoramento por livre docência na UFRJ, com uma tese intitulada: O Norte do Espírito Santo, Região
Periférica em Integração.
Com orientação do nigeriano Akin L. Mabogunje, (presidente da UGI entre 1980-84) especializou-se em teorias da urbanização e análises de sistemas urbanos no ano de 1975, com trabalho intitulado, Uma hipótese sobre a origem do fenômeno urbano numa fronteira de recursos do Brasil. Após uma trajetória na universidade do Brasil, atual UFRJ, estudou no departamento de Planejamento Urbano do MIT nos Estados Unidos, onde obteve titulação de pós doutoramento.
Consulta feita ao currículo Lattes da pesquisadora Bertha K. Becker indica a entrada na graduação no ano de 1949 e seu término no ano de 1952. Esse ano é importante em nossa opinião, pois marca a criação do Centro de Pesquisa de Geografia do Brasil – CPGB pelo professor Hilgard O'Reilly Sternberg. Geógrafo formado pela primeira turma da Universidade do Distrito Federal.
O CPGB será o lócus de formação e produção de importantes nomes da geografia no Rio de Janeiro. Foi criado em confluência com a cadeira de Geografia do Brasil. Reconhecido e aprovado no conselho universitário. Obteve financiamento da Fundação Rockfeller e associou-se ao Conselho Nacional de Pesquisa. Os Primeiros Artigos assinados pela autora confirmam a participação ativa da pesquisadora com o CPGB.
Entre as primeiras atividades do CPGB está a elaboração de relatório interdisciplinar sobre a Conservação da Natureza no Brasil em colaboração com a Associação Internacional de Proteção a Natureza, com sede em Bruxelas. Os primeiros projetos desenvolvidos no Centro foram as produções da Bibliografia Geográfica Brasileira e a Bibliografia Cartográfica, que serviram de elemento de intercambio com pesquisadores internacionais. Concomitante com as pesquisas foi consolidada a biblioteca setorial, dotada de verbas no Orçamento Geral da União. Em convênio com o Conselho Nacional de Pesquisa concede bolsas para os pesquisadores. Como o centro estava ligado a cadeira de geografia do Brasil, da qual o professor Hilgard era o catedrático, as investigações estavam centradas nas relações Homem/Meio, desenvolvidas no Nordeste e na Amazônia. Espaço de pesquisa exposto na produção de Becker.
Posteriormente o CPGB direcionou à pesquisa para os temas: Espaço Agrário, Meio Ambiente, Relações Campo-Cidade (áreas do SUDESTE e da FRONTEIRA), evoluindo para linhas de pesquisa que viriam a consolidar a pós-graduação na UFRJ. A Geografia da Universidade foi projetada no país e no exterior pelo CPGB. A participação na organização e realização do XVIII Congresso Internacional de Geografia da
UGI – 1956 é considerada fundamental para a consolidação de contatos e pesquisas realizadas pelo centro. No congresso Bertha Becker figura como secretária da subcomissão de recepção e membro da delegação nacional do Brasil e o CPGB figura como membro institucional.
Após congresso organizou-se e realizou-se o Curso de Altos Estudos Geográficos sob os auspícios do CNPq/CAPES, com professores de renome no cenário internacional, como Pierre Birot, Andre Cailleux, Pierre Monbeing, Carl Troll, Pierre Deffontaines, Orlando Ribeiro e Irwin Raiz.
O CPGB encerrou suas atividades na conjuntura da reform a universitária dos anos de 1967 e 1968 onde a extinção da Faculdade Nacional de Filosofia reorganizou e realocou os departamentos resultando na criação do Instituto de Geociências. Não se pode abordar a formação e produção da pesquisadora Bertha Becker sem relacioná-la ao conteúdo institucional que a projetou. Indivíduo e Instituição formam um corpus indissociável.

Produção Acadêmica
Primeiros Artigos
Considera-se Primeiros Artigos, um grupo de quatro textos publicados na Revista Brasileira de Geografia – RBG, nos anos de 1966 e 1968. O mercado carioca e seu sistema de abastecimento e Expansão do mercado urbano e transformação da economia pastoril, ambos no volume 28 da RBG no ano de 1966. As migrações internas no Brasil, reflexos de uma organização do espaço desequilibrada e Aplicação de índices climáticos no Nordeste do Brasil, os dois publicados na RBG, volume 30 em 1968.
O Mercado Carioca e seu sistema de abastecimento tem como objetivo discutir uma geografia do abastecimento, Ciência que explica a organização do espaço pelo homem, a geografia não poderia ficar
alheia ao problema, e são inúmeras as áreas em que ela pode contribuir para o estudo e solução, quer estudando a produção em si, tipos de mercado e formas de comercialização, quer efetuando um estudo global de abastecimento, analisando as relações que se estabelecem entre o mercado e as áreas produtoras, através dos canais da comercialização. Esta geografia do abastecimento, entretanto, ainda está para ser
feita.
A Expansão do mercado urbano e transformação da economia pastoril visa esclarecer,

A caracterização das novas relações que se estabelecem entre a cidade e o campo, não tem merecido ainda, no Brasil, a devida atenção, embora sejam elas atualmente, o fator dinamizador da organização do espaço agrário. É nosso propósito, assim nesse trabalho:
1 – verificar em que medida a nova sociedade industrial e urbana vem atingindo a velha organização rural brasileira, justamente num dos setores mais tradicionais da economia agrária — a pecuária.
2 – aquilatar o grau e as formas da transformação do campo por irradiação urbana, através do estudo do processo de integração e organização da economia pastoril do nordeste de Minas Gerais em função do crescimento do mercado do Rio de Janeiro.

Pelos objetivos expostos percebe-se que os textos são complementares, desenvolvidos no Centro de Pesquisa de Geografia do Brasil – CPGB, da Universidade do Brasil – UB. Nesse Centro a pesquisa foi direcionada para temas como Espaço Agrário, Meio Ambiente e Relações Campo-Cidade, em espaços do Sudeste e da Fronteira. Portanto, pode-se relacionar tanto a formação quanto a produção ligada a um lugar especifico de produção que será fundamental para o desenvolvimento da pesquisadora Bertha Becker.
O artigo As migrações internas no Brasil, reflexos de uma organização do espaço desequilibrada, constitui um estudo sobre a população na escala geográfica do Brasil. Considera-se, em relação aos artigos anteriores, um primeiro esforço de pensar a geografia e o espaço geográfico brasileiro com o fenômeno da mobilidade humana.
Para encerrar o que intitulamos Primeiros Artigos, temos Aplicação de índices climáticos no Nordeste do Brasil. É importante dizer que esse texto foi apresentado no XX Congresso Internacional de Geografia realizado em Londres no ano de 1964. Esse fato indica a relação internacional da pesquisadora desde a realização do Congresso da UGI em 1956. Inicia a autora com um reconhecimento de que é impossível estabelecer os limites de uma zona climática, baseada apenas na precipitação. Expõe a confusão que se fez entre “zona seca” e “zona sujeita a seca” e informa que é preciso defini-las e delimitá-las. Para isso recorre a
índices climáticos de LANG, CAPOT-REY e BIROT que usam dados registrados nos últimos trinta anos pelo Serviço de Meteorologia do Ministério da Agricultura.
Guardadas as diversas temáticas dos textos podemos perceber que a problemática do planejamento regional é o pano de fundo das análises. Outro fato considerável da formação e produção está ligada ao fortalecimento do CPGB, onde Becker realizou seus primeiros trabalhos junto a uma equipe de pesquisa coordenada pelo professor Hilgard O'Reilly Sternberg. A geografia aí desenvolvida não destoou das dos centros de pesquisa espalhados pelo mundo e pode-se constatar uma mudança do que foi chamado de geografia tradicional para a nova geografia.

Segunda Fase
A segunda fase da produção e formação da autora inicia-se com a tese de doutoramento por livre docência, intitulada O Norte do Espírito Santo, região periférica em integração, no ano de 1969-1970. A partir desse trabalho segue a produção de dez anos que será condensada no livro Geopolítica da Amazônia. É importante frisar que a temática do desenvolvimento regional ganha uma base teórica que pode ser constatado no prefácio do livro bem como na bibliografia utilizada.
Orlando Valverde, renomado geógrafo, prefaciando o livro de Bertha Becker, A Geopolítica de Amazônia, faz a crítica à geografia quantitativa e à variação da New Geography, mais precisamente aquela exposta por J. Friedmann que baseado na organização de modelos aplica a política desenvolvimentista no Terceiro Mundo.
É interessante notar um prefaciador discutindo as teorias utilizadas por Bertha Becker. Entretanto, ele a isenta de filiações os expositores da Geografia quantitativa e suas variações. Sobre a filiação a Berry ele escreve: “Embora Becker tenha citado Berry e seus seguidores com freqüência, nos capítulos iniciais deste livro, não seria justo incluí-la entre seus mais fiéis adeptos”.
Depois de criticar severamente a teoria do desenvolvimento regional de Friedmann, ele assevera:

“A teoria de Friedmann é falsa e reacionária, porque imagina uma sociedade homogênea, não dividida em classes. As inovações que se difundem da cidade para o campo são somente aquelas que interessam às classes dominantes. No mundo capitalista, isto significa as que vão proporcionar à burguesia e grandes empresas transnacionais maior margem de renda”. Entretanto, vai absolver a autora: “Tampouco se pode considerar a geógrafa Becker como um exemplo perfeito de seguidora de Friedmann”.

A discussão das bases teóricas da autora é fundamental para o corte que Orlando Valverde identifica: “Da metade para o fim do livro, nota-se a influência da nova escola da “Geografia dialética”. A mudança de enfoque da autora passa de uma concepção aliada aos interesses elitistas para a denúncia da opressão que sofrem os povos subdesenvolvidos. O livro de Becker se insere num contexto de mudanças à medida que se viram suas páginas. Expõe a inovação/mudança da autora com a citação sobre o estudo das migrações, “No estudo sobre migrações para a Amazônia — que estatísticos, demógrafos, economistas têm feito com base exclusiva em dados censitários —, a autora o realiza fundamentada em entrevistas. A vantagem deste método assenta no fato de que, por ele, se podem enunciar as causas principais das migrações internas, e não simplesmente suas áreas de origem e seu “ponto de aplicação”.
Critica os geógrafos que não fundamentam suas pesquisas em trabalho de campo e exalta Becker, “Os geógrafos modernos brasileiros sofrem de uma carência aguda de pesquisas de campo. Tornam-se, por isso, excessivamente teóricos, livrescos. Becker é uma honrosa exceção; ela foi ao campo; sondou a realidade. Por isso, ela é, na minha opinião, a mais legítima representante da escola de Geografia que se esboça na Universidade Federal do Rio de Janeiro, a qual teve como principal construtor o geógrafo Hilgard O'Reilly Sternberg”.
Para terminar expõe a intenção de recuperação da Geopolítica por parte de Becker.
Por que o começar por citar um prefaciador? O prefácio lista as idéias que a autora desenvolve no seu texto. E também, a filiação da autora na segunda fase a teoria do desenvolvimento regional. Temos de reconhecer que Orlando Valverde era um dos geógrafos renomados no Brasil e talvez guardasse estreitas ligações cientificas com a autora. Nada melhor do que uma figura conceituada na corporação para credenciar Becker como figura importante do pensamento geográfico brasileiro.
O aprofundamento da análise de A Geopolítica da Amazônia, será tarefa futura. Segundo Moreira 2010, o livro “é um estudo do quadro geral do espaço brasileiro dentro do qual, e só nessa medida e espelho, aparece a especificidade da Amazônia, tema de escolha de investigação pro excelência da autora”. A teoria do desenvolvimento polarizado é a base de Becker, que a enriquece com elementos da economia política do
espaço de Harvey.

Referências Bibliográficas
Anuário do Instituto de Geociências. Vol. 18, ano 1995. Departamento de Geografia, dados históricos.
BECKER, Bertha K. (1966a) O mercado carioca e seu sistema de abastecimento. 28 (2): 129-56. Seção Artigos
BECKER, Bertha K. (1966b) Expansão do mercado urbano e transformação da economia pastoril. 28(4): 297-328. Seção Artigos
BECKER, Bertha K. (1968a) As migrações internas no Brasil, reflexos de uma organização do espaço desequilibrada. 30(2): 98-116.
BECKER, Bertha K. (1968b) Aplicação de índices climáticos ao Nordeste do Brasil. 30 (4): 3-21.
BECKER, Bertha K. (1982). Geopolítica da Amazônia: A Nova Fronteira de Recursos. Rio de Janeiro: Zahar,. 233 p.
BECKER, Bertha K. Memorial Bertha Becker. Memorial que acompanha o requerimento de inscrição em concurso para provimento de cargo de professor titular no Departamento de Geografia da UFRJ. 1993
MOREIRA, Ruy. (2010). O Pensamento Geográfico Brasileiro; as matrizes brasileiras. v. 3. São Paulo: Contexto. p. 95-98

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